População LGBT+: o impacto do Serviço Social

As experiências concretas de Cássia Azevedo e Raphaela Fini são testemunhos do que é ser mulher trans no Brasil e do quão imprescindível é a atuação profissional de assistentes sociais na luta pelos direitos da população LGBT+*

 

“Eu digo sempre que minha corpa preta se movimenta em diferentes lutas, sejam elas feministas, antirracistas, anticapitalistas, antitransfóbicas e, até mesmo, abolicionistas. É assim que eu abalo as estruturas da sociedade, ocupando espaços, provocando políticas públicas e sendo a resistência”. Assim a assistente social ssia Azevedo, mulher, negra, transexual, define a luta de uma mulher preta e trans no Brasil.

Cassia Azevedo – Foto: arquivo pessoal

No seu trabalho no Centro de Cidadania LGBTI Edson Neris — UNAS Heliópolis, no Programa Transcidadania, da Prefeitura Municipal de São Paulo, Cássia atende o público trans — travestis, mulheres e homens transexuais — em situação de vulnerabilidade social na capital paulista, orientando e encaminhando essas pessoas, entre outros, segundo suas necessidades e demandas de hormonioterapia, alteração e retificação do nome e, o maior trabalho neste escopo, buscando parcerias com empresas para indicação a estágios e ao primeiro emprego. O Centro de Cidadania LGBTI Edson Neris cobre dez Subprefeituras da Zona Sul e extremo Sul de São Paulo, atendendo às demandas do público LGBT+ por meio de diferentes programas, com o trabalho especializado de psicólogos/as, pedagogos/as, advogados/as e assistentes sociais. O Transcidadania tornou-se o carro-chefe entre essas frentes de atuação do Centro, por ser voltado à elevação escolar, capacitação e inserção no mercado de trabalho da população trans, com o objetivo de proporcionar a reintegração social, o resgate da cidadania e a autonomia.

Em outro campo, o da saúde, Raphaela Fini, mulher, branca, transexual, atua há quatro anos em projetos de prevenção em DST/AIDS, sendo atualmente agente articuladora pela Coordenadoria Municipal de Prevenção às IST/HIV Aids de São Paulo, integrante do Comitê Técnico de Saúde Integral LGBTI de São Paulo, colaboradora do projeto TransPrevenção, do Instituto Vida Nova, e assistente social da equipe de apoio do projeto Prep 15 19, da Faculdade de Medicina da USP. Em novembro de 2020, Raphaela participou do Ministerial Meeting of the Global HIV Prevention Coalition, da GPC (Global HIV Prevention Coalition/Coalizão Global para Prevenção do HIV), falando na abertura do encontro internacional sobre seu trabalho de prevenção com a população trans.

Raphaela Fini – Foto: arquivo pessoal

Raphaela atende a população LGBT+, como travestis e transexuais, mais especificamente, em situação de vulnerabilidades, trabalhadores/as do sexo e pessoas vivendo com HIV. “As demandas apresentadas giram em torno da transfobia estrutural, da exclusão e desumanização que dela decorrem. Isso se materializa na falta de acesso a todos os direitos, desde ir à escola e tê-la como um espaço seguro de desenvolvimento e aprendizagem às barreiras de acesso à saúde, moradia, vida digna”, descreve, explicando que trabalha na perspectiva de educadora de pares, pois, sendo também uma pessoa trans, a identificação e referência são facilitadas. “Minha intervenção incide no grupo ao qual pertenço. Isso faz com que eu consiga perceber diversas nuances da exclusão social, pois também passei por esse processo”, salienta.

 

Barreiras, avanços e retrocessos     

No acesso ao mercado de trabalho, Cássia explica que há várias questões enfrentadas pela população LGBT+, com destaque ao desrespeito à identidade de gênero, mais acentuado quando a pessoa é trans ou travesti, o que acontece, por exemplo, na acessibilidade a banheiros e no uso de “ela” ou “ele”. “Para a construção da cidadania e a emancipação da população LGBTQIA+, é preciso ter políticas públicas que viabilizem e, assim, afirmem seus direitos e acesso a direitos básicos de qualquer cidadão/ã, a começar pelo acesso à educação, formação profissional e Universidade. E para que todos/as consigam ter as mesmas oportunidades e concorram ao mercado de trabalho com as mesmas chances, é preciso tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida de sua desigualdade”, reflete Cássia.

O contexto político de extrema direita conservadora, acrescenta Raphaela, é desfavorável à pauta e às demandas da população LGBT+ no Brasil, havendo, inclusive, uma desconstrução de suas especificidades, com estagnação e retrocessos visíveis na oferta e no acesso à saúde.   “Em São Paulo, existem esforços institucionais muito importantes e significativos, mas que ainda demoram para se materializar no dia a dia da população usuária do SUS. Mas essas estratégias construídas numa relação próxima com a sociedade civil são fundamentais”, pontua a assistente social, que aponta o Protocolo de Cuidado Integral às Pessoas Travestis e Transexuais lançado pelo Comitê Técnico de Saúde Integral LGBTI, da Secretaria Municipal da Saúde (SMS) de São Paulo, como um relevante avanço para a implementação de um cuidado transdisciplinar.

Em 2020, os impactos da pandemia da COVID-19 para o público atendido por Cássia e Raphaela são representativos dos problemas já enfrentados historicamente pela população LGBT+ no país, como a violência, a exclusão social e os obstáculos na educação, no mercado de trabalho e na saúde. “A pandemia colocou uma lente de aumento nas questões sociais e nos determinantes sociais em saúde, assim como nas barreiras de acesso [a direitos, serviços etc.]  para essa população. Entendo que o impacto maior seja na renda, na saúde mental e nas consequências do isolamento social para uma população que já é historicamente excluída”, analisa Raphaela, complementando que as atenções e exigências da COVID-19 deslocaram os esforços para outras demandas.

Cássia revela que têm sido vários os relatos de diferentes tipos de violência entre as pessoas trans atendidas na sua rotina de atuação, a maioria, travestis e transexuais profissionais do sexo — muitos/as dos/as quais, sem ter conseguido o Auxílio Emergencial, despejados/as das casas de cafetinas por falta de pagamentos de diárias e aluguel. A intolerância e o ódio por parte de familiares também aumentaram, observa a assistente social. “O isolamento social sempre fez parte dos relatos das pessoas trans. O que aumentou foi o distanciamento social que essa população sofre, até com a falta de acesso à internet. As leis e diretrizes básicas de acesso à educação não chegaram até essas pessoas. A grande maioria relata estar sem vontade de viver ou sem perspectiva de vida”, descreve. Segundo Cássia, não houve suspensão dos trabalhos no Edson Neris desde o início da pandemia. Com a organização da equipe e a readequação do ambiente segundo todos os protocolos de segurança em saúde, além dos atendimentos jurídicos, psicológicos, pedagógicos e de assistência social, o Centro promoveu ações de doação de cestas básicas e plantões para orientações diversas.

 

Ações para transformar

Os caminhos de Cássia e Raphaela se encontram no Serviço Social e nos desafios enfrentados em seus percursos pessoais e profissionais. Cássia destaca três palavras para resumir sua trajetória profissional até aqui: luta, resistência e empoderamento. “Luta porque lutei muito para sobreviver a todos os preconceitos e discriminações nesta sociedade, e ainda luto. Resistência porque eu sou uma mulher trans, preta e periférica. E empoderamento por eu ser uma representatividade e empodedrar outras mulheres por ser uma mulher trans”, reflete.

Raphaela conta que cresceu e se socializou em meio à transfobia estrutural e cotidiana, e que chegou a deixar a escola por não aguentar a pressão. “Vivi de perto a marginalização a que a comunidade trans está exposta, vejo com clareza como o processo de exclusão se materializa, como o acesso ao Ensino Superior me trouxe uma outra visão de mundo”, relata. Hoje, como assistente social, leva todo o seu repertório aos trabalhos que desenvolve com a população trans. “Extremamente complexo, e, por vezes, doloroso, pois vivi diversas experiências negativas devido a essa transfobia estrutural. E trabalhar com isso me faz revisitar diversas dores, mas, ao mesmo tempo, impulsiona-me a querer intervir da melhor forma possível para colaborar com essa luta pelos direitos da população trans. É inspirador e desafiador”.

A atuação de assistentes sociais pode ter um impacto transformador na vida das pessoas LGBT+. Somando sua especialidade à de outros/as profissionais, assistentes sociais podem contribuir concretamente, por exemplo, para a elevação educacional, a qualificação profissional e a entrada no mercado de trabalho, que promovem o resgate de direitos e da dignidade, a autoestima, a autonomia e a cidadania, a empregabilidade, o reconhecimento da sociedade, o empoderamento. No Transcidadania, que opera nesses três eixos, Cássia descreve que, uma vez que a população atendida é inserida na instituição escolar e capacitada profissionalmente, começa o desafio dos/as assistentes sociais de buscar parcerias com empresas que estejam abertas a cotas para a população LGBT+, que tenham uma educação sobre diversidade sexual e entendam as reais necessidades desse público. “Então, nós, assistentes sociais, impactamos de uma maneira positiva quando inserimos essas pessoas trans na empresa e conseguimos resgatar toda a sua dignidade e toda a sua autonomia frente às demandas da sociedade”, ilustra Cássia.

Já na promoção da saúde compreendida como bem-estar biopsicossocial, Raphaela explica que assistentes sociais ajudam a fortalecer vínculos comunitários e de suporte social e a disponibilizar reflexões importantes que, muitas vezes, são inacessíveis devido à marginalização compulsória da população LGBT+. “Acredito que ter a dimensão social da saúde com um olhar apurado é extremamente importante, pois o preconceito que pessoas LGBT+ sofrem no seu processo de desenvolvimento impacta nas vulnerabilidades em saúde. Os aspectos de sociabilidade também são afetados. Nesse sentido, a promoção de saúde inclui obrigatoriamente a promoção de cidadania”, aponta, considerando fundamental, para um impacto positivo significativo, desenvolver o trabalho, acima de tudo, pautando-se na emancipação dos sujeitos sociais.

No TransPrevenção, ela comemora resultados positivos com a estratégia de intervenção adotada, em que os/as colaboradores/as vão às residências de travestis e pessoas trans e promovem rodas de conversa, conduzidas por pares. “Conseguimos um resultado muito interessante, de se inserir na comunidade trans de forma mais significativa, pois eliminamos barreiras de acesso a informações e orientação sobre autocuidado, novas tecnologias de prevenção acessíveis. Mas conseguimos, principalmente, possibilitar reflexões importantes sobre assuntos tão complexos e carregados de estigma como a sexualidade, a legitimidade de práticas sexuais e desejos, as possibilidades de resistência e sobrevivência, falar sobre HIV na perspectiva de autonomia, de prevenção através de promoção de saúde”, destaca.

Para Raphaela, o Serviço Social, pelo seu enorme potencial de colaboração para a efetivação dos direitos das pessoas trans, deve se apropriar das demandas desta população. A assistente social defende, por exemplo, que os/as profissionais da base se apoderem da importância da compreensão sobre as questões das transexualidades. “O olhar social é fundamental para compreender melhor a sinergia de vulnerabilidades a que a população trans está sujeita e exposta pela transfobia estrutural. O Serviço Social é uma categoria profissional fundamental para fomentar essas discussões, sendo importante criar caminhos de fortalecimento, principalmente na maior aproximação e articulação com os movimentos sociais e na maior participação em ações efetivas que garantam, entre outros, a qualidade no atendimento vinculado à educação continuada e o acesso de pessoas trans aos serviços e sistemas de proteção e saúde”, afirma.

 

*O CRESS-SP, em decisão colegiada, com a participação dos/as assistentes sociais LGBT+, optou, neste momento, pela sigla “LGBT+”, considerando, inclusive, que o “+” já contempla todos os outros grupos que integram essa população.

 

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