Nota sobre as situações de calamidade pública e o Serviço Social

O Conselho Regional de Serviço Social de São Paulo – 9ª Região (CRESS-SP) manifesta sua solidariedade às pessoas que vivem, estão ou estiveram na região do litoral norte do estado de São Paulo, e sofrem com as consequências deixadas pelas fortes chuvas e pela falta de política pública de moradia e infraestrutura para situações de calamidade, bem como, com todas as pessoas que têm sofrido com situações semelhantes em regiões litorâneas do Estado e nas periferias da região metropolitana da cidade de São Paulo.

Expressamos, também, nossa solidariedade à categoria profissional de Serviço Social que tem composto o contingente no trabalho emergencial na linha de frente.

Importante considerar que as fortes chuvas que têm atingido diversas regiões do Brasil, são previstas para esta época, mas, sua intensidade recente, oriunda de impactos do aquecimento global, concomitante a ausência de políticas públicas, acaba por afetar com maior proporção as populações que residem em condições precárias e vulneráveis. Historicamente, a construção e o desenvolvimento social das cidades brasileiras, contribui para ocupações irregulares, colocando a população de baixa renda em áreas denominadas de risco, marcadas pelo não acompanhamento de políticas públicas adequadas. Nesse sentido, reafirmar a importância de políticas públicas que garantam de fato o direito à cidade se faz urgente e necessário.

No que tange a região do litoral norte do estado de São Paulo, não podemos deixar de mencionar a forma como o território foi se construindo, e os fatores ambientais que ali são permeados, a partir da especulação imobiliária em grande parte das áreas, por se tratar de uma região turística de alto padrão, e a desigualdade expressada no não acesso de grande parte da população a serviços de saneamento básico e infraestrutura. Sendo assim, observam-se as injustiças ambientais sofridas como consequência de um sistema de produção de lucro e de exploração desenfreada da natureza que atinge principalmente as mulheres, as pessoas negras, as comunidades tradicionais, indígenas e quilombolas.

O processo de desenvolvimento econômico se dá na criação de zonas de sacrifício. Desenvolve-se sacrificando pessoas, sacrificando os corpos. Esses corpos têm classe, cor, raça, gênero e etnia. Não à toa, a legislação ambiental vem sendo fragilizada, ignorando a existência dos povos e comunidades originárias e tradicionais, do que se evidencia o desmantelamento das legislações brasileiras, a entrega da Amazônia a madeireiros, grileiros, garimpeiros e dos territórios para multinacionais.

Este é o chamado racismo ambiental, que expressa a carga desproporcional dos riscos, dos danos e dos impactos sociais e ambientais sobre os grupos étnico-raciais mais vulneráveis. (CFESS Manifesta, mar/2022)

Neste contexto de tamanha intensificação das desigualdades sociais, e da falta de acesso a direitos fundamentais, também se coloca a atuação profissional das/dos assistentes sociais, profissão que tem como objeto de trabalho as expressões da questão social e como princípios éticos fundamentais a “Ampliação e consolidação da cidadania, considerada tarefa primordial de toda sociedade, com vistas à garantia dos direitos civis sociais e políticos das classes trabalhadoras”; e o “posicionamento em favor da equidade e justiça social, que assegure universalidade de acesso aos bens e serviços relativos aos programas e políticas sociais, bem como sua gestão democrática; tal como se constituem deveres do/a assistente social participar de programas de socorro à população em situação de calamidade pública, no atendimento e defesa de seus interesses e necessidades” (CFESS, CEP, 1993).

 Então, para se falar do trabalho de assistentes sociais em situações de calamidades, em primeiro lugar, é necessário afirmar: a crise ambiental é resultante do modelo capitalista e da sua ganância infinita e sem limites, voltada à exploração exacerbada das diversas frações da classe trabalhadora e do planeta, necessárias para o processo de acumulação no capitalismo. (CFESS MANIFESTA, mar/2022)[1]

Fundamental ressaltar que o processo de formação profissional de assistentes sociais é generalista, a categoria é habilitada a intervir em diferentes espaços sócio-ocupacionais, e o Conjunto CFESS-CRESS tem se debruçado para compreender o trabalho profissional neste cenário. Porém, é primordial que esteja balizado nas competências e atribuições conforme a Lei 8662/93.

A atuação profissional, em contexto de calamidade pública, é imprescindível que seja pautada no projeto ético-político, compromissos éticos e articulação na prática, com as dimensões da profissão: ético-política e teórico-metodológica, e que esteja alicerçada nos pressupostos e fundamentos da própria profissão. É construir estratégias exigindo do poder público, com reflexão crítica, ações com continuidade e não fragmentadas e focalizadas, que estejam vinculadas a outras etapas de enfrentamento, como o planejamento de políticas públicas (CFESS MANIFESTA, MAR/2022).

Deste modo, refletir sobre os aspectos que permeiam a atuação profissional no contexto de calamidades públicas implica partir de dois pressupostos relacionados à historicidade e à atualidade da profissão.

Primeiramente, cabe refletir que o dever ético da atuação profissional por assistentes sociais não contém naturalizada a concepção de que esta atuação terá que se dar de forma não remunerada (entendida também como “voluntária”), bem como de que a/o profissional deve admitir, sem análise crítica, o voluntariado geral como atitude e ação irrevogavelmente necessária nestas situações.

O dever ético profissional é categoria de reflexão filosófica e política, atrelada às normativas oficiais de seus Conselhos de orientação e fiscalização. Para o que tange ao Serviço Social, considerando os princípios éticos já citados, de defesas de políticas públicas equitativas, atrelando-as ao atual significado social da profissão (a qual só existe como tal porque rompeu historicamente com o trabalho não remunerado), cabe às/aos assistentes sociais a disposição para compor equipes de trabalho de enfrentamento a calamidades públicas, desde que haja requisição oficial da autoridade responsável, pautada minimamente por um planejamento competente à situação posta e que aponte nitidamente a demanda pela atuação profissional.

O segundo pressuposto carrega a recusa a uma atitude profissional voluntarista, que deve se pôr mesmo havendo remuneração pela atuação excepcional de enfrentamento à calamidade pública. Queremos dizer que o alcance e manutenção da valorização profissional que tanto lutamos, também passam por apontar as exigências legais e as condições éticas e técnicas mínimas para a realização do trabalho profissional, conforme Resolução CFESS nº 493/2006. Sabemos que este ponto contém uma polêmica inerente, que é a da dimensão do que se está considerando como calamidade pública e quais as demandas presentes para a atuação profissional em determinado momento.

Este Conselho tem uma experiência histórica que queremos trazer para ilustrar esta discussão. A conhecida desocupação violenta (pela via judicial da reintegração de posse) da comunidade do Pinheirinho, em 2012, na cidade de São José dos Campos-SP, teve a participação de assistentes sociais convocadas/convocados para atuação no âmbito de um decreto de calamidade pública baixado pela prefeitura do município. Uma análise crítica daquele contexto facilmente nos fará constatar que se a colocação forçada, pelo Estado, de milhares de famílias em uma condição de alta vulnerabilidade e pauperização social maior do que elas já viviam, pode ser considerada por este mesmo Estado como “calamidade pública”, todas as periferias onde reside o povo pobre deste país vive uma situação diária de calamidade pública, mas sem a requisição “especial” de profissionais para superar as ditas “situações humanitárias”.

Trazendo esta reflexão de exemplo para a concreta situação atual das periferias do município de São Sebastião- SP, atingidas fatalmente pelos impactos da maior tempestade registrada na história do país, temos a nitidez de que essa situação não pode ser considerada como apenas uma alegoria de “tragédia”, pois as recentes experiências vividas em Angra dos Reis-RJ (2009), na Região Serrana do Rio de Janeiro (2011 e 2022) e vários episódios no próprio Litoral Norte paulista, neste período, foram mais que suficientes para que, enquanto se diz que há investimentos sendo feitos em políticas de Direito à Cidade, se estabelecessem leis estaduais e municipais regulando Planos de Contingência para Catástrofes Ambientais, os quais devem relacionar o montante de recursos para todas as medidas preventivas, a categorização de dimensionamentos dos eventos, a infraestrutura e equipes profissionais necessárias para atender a contento os eventos e os critérios nas esferas públicas para compor essas equipes.

Em resumo, há grande diferença entre um/uma assistente social ou qualquer outro/a profissional estar à disposição para atuar em calamidades públicas que podem ser previstas por estudos e medições científicas das mais diversas áreas do conhecimento, e a disponibilidade voluntária ou voluntariosa de profissionais que, não raro, irá sofrer ora pelo objetivo esgotamento físico e mental de compor uma atuação muitas vezes inócua e desorganizada, ora pela subjetiva depreciação do significado social da profissão pela via moral da caridade, com roupagem profissional (ALVES, 2017). Não raro, também, pelas duas possibilidades acontecendo ao mesmo tempo.

Este Conselho Regional de Serviço Social, portanto, orienta a categoria profissional próxima ou envolvida territorialmente em situações oficializadas como de calamidade pública, a manter aproximação e apropriação da realidade das famílias que vivem em territórios de risco, como também, estar ao lado dos movimentos sociais no processo de mobilização popular junto às pessoas atingidas e suas comunidades, organizações, lideranças populares.

É na aposta de um trabalho profissional mediado pelo projeto ético-político do Serviço Social, que se reforça a necessidade de se enfrentar: a) a abordagem hegemônica de “desastres”, calamidades públicas; b) a culpabilização dos sujeitos pelas suas condições de vida e moradia; c) a prevalência de práticas imediatistas (CFESS MANIFESTA, mar/2022)

Ressalta-se a relevância de cumprir seu dever ético de atuação profissional atrelando-o com rigorosa observação na prestação do serviço público com boa qualidade, a qual deve ser exigida por adequado e planejado subsídio do poder público, garantindo remuneração e condições éticas e técnicas para tal fim. Condições essas que, quando ausentes ou parcas, devem ser comunicadas, no que couber, a este Conselho e ao Ministério Público. Explicitamos ainda que os/as assistentes sociais além de participarem do processo de execução do atendimento à população, que contribuam nos processos de planejamento e elaboração de forma estratégica das ações de atendimento, a partir das políticas públicas que se inserem.

[…] trabalhar na construção de respostas, mas também nas respostas posteriores aos impactos. Para isso, são necessárias condições éticas e técnicas asseguradas pelos serviços e políticas sociais. É nessa direção que é preciso defender a continuidade das ações, visando a enfrentar a realidade vivenciada após o momento de emergência, quando a mídia para de noticiar, o imediato passa e a realidade dos sujeitos e da família permanecem. […]”(CFESS MANIFESTA, mar/2022)

 Em defesa da vida, do acesso às cidades como um direito de todas, todos e todes, e de políticas públicas que combatam as desigualdades socioterritoriais, nos encontramos na luta!

*Nota Pública elaborada pela Direção Estadual, em conjunto com Seccional São José dos Campos do CRESS-SP

 

 [1] CFESS MANIFESTA. Situações de “Desastres” requerem assistentes social

ALVES, Luciano in Emancipa: o cotidiano em debate / Revista do Conselho Regional de Serviço Social de São Paulo – CRESS 9ª Região. n.2, maio 2017. p. 45-57. São Paulo : CRESS 9ª Região, 2016-

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