Maio de lutas: Empreendedorismo ou precarização do trabalho?

A assistente social Bárbara Canela Marques, Conselheira da gestão estadual do CRESS-SP, fala do incentivo exacerbado ao empreendedorismo no Brasil e em São Paulo, e de sua relação com a precarização da vida dos/as trabalhadores/as

Bárbara Canela Marques – Conselheira Estadual do CRESS-SP

A ideia de empreendedorismo, que vem sendo ainda mais amplamente divulgada desde o início da pandemia da COVID-19, esconde — e ao mesmo tempo revela — a grave situação de abandono que enfrentam trabalhadores/as no Brasil. Com direitos trabalhistas sempre mais flexibilizados, ou mesmo sem nenhum direito garantido frente à crescente “pejotização”, entregues à informalidade ou vítimas do desemprego, esses/as trabalhadores/as têm como única alternativa “empreender”. O que, para a maioria, é uma falsa opção.

Na entrevista a seguir, Bárbara Canela Marques, Conselheira da gestão estadual do Conselho Regional de Serviço Social de São Paulo — 9ª Região (CRESS-SP), ajuda a entender a questão com reflexões importantes sobre a relação direta entre precarização do trabalho, desemprego e empreendedorismo no país. A assistente social ainda identifica o desfavorecimento da classe trabalhadora pelo Governo Estadual paulista e critica a “ideologia do empreendedorismo”.

“O empreendedorismo é um dos meios — oneroso — para sobreviver, e de forma alguma pode ser encarado como solução para o problema do desemprego estrutural e da vulnerabilidade social de imensa parcela da população. Nenhuma alternativa individualizada e precária resolverá demandas de natureza complexa e de rebatimentos coletivos”, afirma.

CRESS-SP: Como assistentes sociais entendem o empreendedorismo?

Bárbara Canela Marques: Assistentes sociais, comprometidos/as com os princípios fundamentais éticos da profissão e com a defesa dos direitos da classe trabalhadora, consideram o empreendedorismo uma venda de ilusões, na qual se apregoa que é possível ao/à trabalhador/a mudar sua classe social (de empregado/a para patrão/oa), por meio de produção de renda por “conta própria”.

Ou seja, a ideia simplista e pragmática de que a solução para o desemprego estrutural é possível pelo esforço e investimento financeiro, de energia e de tempo de cada trabalhador/a. Basta ver sua concepção: “Empreendedorismo é a capacidade que uma pessoa tem de identificar problemas e oportunidades, desenvolver soluções e investir recursos na criação de algo positivo para a sociedade”. (Sebrae/SC, 2019)1

CRESS-SP: Há hoje, no Brasil, uma “ideologia do empreendedorismo”?

Bárbara: Sim. A ideologia do empreendedorismo é fruto da lógica neoliberal que visa à redução de custos da produção para o aumento dos lucros das grandes corporações. Tal lógica foi introjetada no país nos governos da década de 1990 e, ao longo dos anos, tem conseguido desmantelar direitos sociais e trabalhistas que fixavam patamares mínimos para a garantia à classe trabalhadora da vida e da proteção nas relações de trabalho.

Foi um conjunto de fatores que estabeleceu o cenário atual, no qual o empreendedorismo surge como “solução para todos os problemas”. São alguns desses fatores: Emenda Constitucional nº 95/2016, que limita por 20 anos os gastos públicos; Lei n° 13.467/2017, Contrarreforma Trabalhista que provocou mudanças estruturais fundamentais nas normativas, implementando a “flexibilização” dos direitos trabalhistas; Emenda Constitucional nº 103/2019, Contrarreforma da Previdência Social, que alterou, significativamente, a legislação previdenciária do país.

Assim, diante da precarização das condições de trabalho e das políticas públicas para suporte à população, e da limitação de acesso a benefícios previdenciários, a ideologia do empreendedorismo implica na desresponsabilização do Estado brasileiro em dar resposta às expressões da questão social e transfere à sociedade civil a busca por formas de lidar com as sequelas da pauperização da classe trabalhadora.

CRESS-SP: Atualmente, o incentivo ao empreendedorismo é maior do que aos direitos dos/as trabalhadores/as? Qual é o recorte em São Paulo?

Bárbara: Não há dúvida que sim! As informações veiculadas nas grandes mídias salientam que o Brasil, em 2020, registrou o maior número de empreendedores/as de sua história. No Portal do Empreendedor2 do Governo Federal consta que, em dezembro de 2019, o número de inscritos/as, ou “optantes”, no SIMEI3 no país era de 9.430.438, e, destes/as, 2.540.259 eram do Estado de São Paulo. No mês de março deste ano, registraram-se 11.916.041 no país e 3.224.240 em São Paulo, um aumento de mais de 680 mil no estado.

O Governo do Estado de São Paulo divulgou, em 2021, um aporte de capital ao “Programa Empreenda Rápido”, que reúne uma rede de fomento ao empreendedorismo do estado em uma única plataforma. Há oferta de qualificação, acesso ao crédito com taxas de juros menores entre as instituições financeiras do país, facilitação para a abertura da empresa.4 No ano passado, anunciaram que, para auxiliar os/as empreendedores/as formais e informais a atravessarem a crise causada pela pandemia da COVID-19, seriam ofertados empréstimos com condições especiais, sendo R$ 100 milhões do Banco do Povo e R$ 50 milhões do Sebrae-SP.Lançou, também, em março deste ano, o programa “Empreenda Mulher”, com 40 mil vagas gratuitas em cursos de qualificação em empreendedorismo e a liberação de R$ 50 milhões em microcrédito pelo Banco do Povo, exclusivos para mulheres domiciliadas no Estado de São Paulo.6

Prometeu a criação de um auxílio desemprego estadual no valor de R$ 450, por cinco meses, a partir de maio de 2021. Entretanto, o próprio governo solicitou que o Projeto de Lei 124/2021 fosse devolvido ao Executivo para reexame da matéria, no dia 8 de abril7, e não o apresentou mais.

Nestes exemplos, é possível verificar a predileção do governo paulista ao/à empreendedor/a.

CRESS-SP: Qual é a relação entre precarização do trabalho, desemprego e empreendedorismo?

Bárbara: São frutos de um sistema que se retroalimenta a partir da exploração da mão de obra e da precarização de vida dos/as trabalhadores/as. A flexibilização dos direitos trabalhistas aumenta a precarização do trabalho, seja pela perda de direitos, seja pela redução de salários, extensão da jornada de trabalho, falta de condições e/ou proteção para sua realização, entre outros.

O fechamento de postos de trabalho formais e/ou a substituição do trabalho humano pelas novas tecnologias, o que o sociólogo Ricardo Antunes denominou de “Indústria 4.0”, aumentam o número de pessoas que estão desempregadas, o que, com o desmantelamento do sistema de Seguridade Social e dos direitos trabalhistas do Brasil, leva uma grande parcela da classe trabalhadora à informalidade e a subempregos para garantir a sobrevivência.

Os dados do IBGE, com base na PNAD Contínua referente ao 4° trimestre de 2020, indicam que a taxa média anual de desocupados/as no país subiu de 11,9% em 2019 para 13,5% em 2020. Quando analisados pelo recorte de cor ou raça, brancos/as são 11,5%, pretos/as, 17,2%, e pardos/as, 15,8%, evidenciando o quanto a população negra continua a ser a mais atingida pelo desemprego no país. (Agência IBGE Notícias, 2021)8

Neste contexto, a transferência das responsabilidades e dos riscos da reinserção do/a trabalhador/a no mercado de trabalho tem sido colocada em prática pela ideologia do empreendedorismo. Cabe ao/à trabalhador/a encontrar formas de sair da crise que a (in)gestão do Governo promove, tendo a mídia instigado a ideia de que é possível a todos/as “ser seu/sua próprio/a patrão/ao”, basta esforço para merecer.

Alienado/a sob essa ótica, o/a trabalhor/a não reconhece que esse “esforço”, não raras as vezes, significa destinar o dobro de tempo, de dinheiro e de energia do que antes para sobreviver, já que o que não é propagado é que a prosperidade é exceção, e não a regra ao/à empreendedor/a.

Ou seja, a precarização do trabalho, o desemprego e o empreendedorismo, sob o viés da meritocracia, são mecanismos de exploração, desarticulação e pauperização da classe trabalhadora.

CRESS-SP: Como o cenário tem se apresentado na pandemia da COVID-19?

Bárbara: A pandemia do novo coronavírus escancarou a desigualdade social do país, uma vez que a população preta, pobre e residente nas regiões mais periféricas é a mais afetada neste contexto. Quando o distanciamento social fez-se necessário para evitar a transmissão do vírus, muitas das formas precárias e informais de trabalho ficaram impossibilitadas de realização, piorando as condições de vida da classe trabalhadora.

Os dados da Pesquisa Trajetórias Ocupacionais, realizada pela Fundação SEADE na Região Metropolitana de São Paulo (RMSP), divulgados em abril de 2021, revelaram a piora da condição dos/as negros/as no mercado de trabalho durante a pandemia, já que a taxa de desemprego aumentou de 15,2% para 20,6%. Segundo o estudo, “no primeiro ano da pandemia, os negros foram fortemente afetados pela crise, com maior dependência de mecanismos de transferência de renda, maior desalento e menor isolamento social devido à necessidade de trabalho presencial”. (FUNDAÇÃO SEADEa, 2021, p.1)9

Os/As trabalhadores/as que possuem registro formal foram afetados/as com diminuição de salários, colocados/as em trabalho home office — cuja estrutura ficou, em sua maioria, a seu encargo, bem como o desafio de lidar com as demandas profissionais, domésticas e familiares, que ficaram concentradas no mesmo espaço — ou foram demitidos/as. As informações da pesquisa da Fundação SEADE divulgadas em março de 2021 apontaram que 27 em cada 100 mulheres ocupadas perderam o trabalho em 2020 na RMSP: “Entre as mulheres ocupadas em 2019, 27% não estavam mais trabalhando no final de 2020; 11% foram para o desemprego e 16% para a inatividade. Entre as desempregadas em 2019, 40% continuavam sem trabalho e 31% foram para a inatividade”. (FUNDAÇÃO SEADEb, 2021, p.1)10

Aqueles/as que estão na linha de frente dos serviços essenciais — entre os/as quais assistentes sociais — estão submetidos/as à sobrecarga de trabalho, devido à precarização das políticas públicas, ao risco de contaminação pela falta de treinamento, à escassez de equipamento de proteção individual (EPI) e de outros insumos para o atendimento, resultando em grande desgaste físico e psíquico e interferindo em sua vida dentro e fora do ambiente de trabalho.

O relatório do Núcleo de Estudos da Burocracia, da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (NEB FGV-EAESP), referente a pesquisa on-line realizada com profissionais da assistência social de todas as regiões do Brasil, na qual 50% dos/as participantes eram assistentes sociais, explicita a intensificação do adoecimento dos/as trabalhadores/as: “A maior parte dos(as) profissionais de todas as categorias percebeu impacto na saúde mental durante a pandemia. No entanto, psicólogos(as) e assistentes sociais declararam proporcionalmente ter sido mais afetados dentre os(as) demais profissionais (81%, ambos)”. (Fundação Getulio Vargas, 2021. p.17-18)11

Assim, os problemas sanitários e sociais provocados pela COVID-19 não são os únicos que abalam os/as trabalhadores/as brasileiros/as. O Brasil, há 30 anos, tem sido atacado com o “vírus” do projeto neoliberal, o qual, cotidianamente, afeta direitos sociais, desmantela direitos trabalhistas e, com isso, precariza as condições de vida da classe que depende da venda da sua força de trabalho para sobreviver.

A ideologia do empreendedorismo implica na desresponsabilização do Estado brasileiro em dar resposta às expressões da questão social e transfere à sociedade civil a busca por formas de lidar com as sequelas da pauperização da classe trabalhadora

CRESS-SP: Como seria possível “equilibrar as contas” entre empreendedorismo e trabalho no Brasil?

Bárbara: Não há como equilibrar a superexploração da classe trabalhadora, pois a exclusão é a lógica que sustenta o mercado de trabalho. Precarizar a vida do/a trabalhador/a o/a torna mais suscetível (por necessidade de sobrevivência) às mais diversas formas de usurpação da sua força de trabalho. O empreendedorismo é um dos meios — oneroso — para sobreviver, e de forma alguma pode ser encarado como solução para o problema do desemprego estrutural e da vulnerabilidade social de imensa parcela da população. Nenhuma alternativa individualizada e precária resolverá demandas de natureza complexa e de rebatimentos coletivos.

Os ataques implementados aos direitos sociais e trabalhistas só podem ser enfrentados pela luta coletiva dos/as trabalhadores/as. O Serviço Social tem um norte ético-político que orienta a apreensão crítica da realidade social e a prática profissional contra todas as formas de opressão e exploração da classe trabalhadora. O caráter político-pedagógico da profissão muito pode contribuir para a mobilização e organização política e sindical dos/as trabalhadores/as, sendo estas por ramo de atividade, e não por categoria.

É por meio da consciência de classe e da luta coletiva que serão possíveis a valorização e novas perspectivas de trabalho e de vida à classe trabalhadora!

Referências

 

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