“Não sou descendente de escravos. Eu descendo de seres humanos que foram escravizados.”
Makota Valdina
O CRESS/SP, Gestão Ampliações “Trilhando a Luta, com Consciência de Classe” (2017-2020), se manifesta sobre o falecimento da companheira de lutas, a assistente social e docente Maria Isabel de Assis, nossa querida Mabel! Ela tinha 60 anos e faleceu em 01 de dezembro de 2019, em decorrência de câncer que enfrentava há 11 meses.
Esta singela femenagem – construída a várias mãos, mentes e corações – expressam o reconhecimento ao compromisso e história de vida e de luta da grande companheira que era direta, objetiva, aguerrida, apaixonante, carinhosa…
Mabel era filha de Ogum e Iansã, uma mulher forte, autêntica, falava o que pensava, era sempre astuta, sensível, perspicaz. Com seus lindos olhos de lince, observava coisas que a olhos (nus) não seria possível perceber. Adorava um bom ‘samba de raiz’; ‘samba rock’, ‘samba de roda’ e suas preferências musicais eram por Roberto Ribeiro, Reinaldo, Clara Nunes e Jorge Ben. Tinha uma especial paixão pelo Rio de Janeiro e Salvador, um carinho todo especial por Cachoeira, e o samba de roda de Santo Amaro. Os tambores do Yle aYe, Olodum, Muzemza, Timbalada, ate mesmo o som do Berimbau, levavam Mabel a uma viagem em seus movimentos, leves, fortes e suaves, marcando sua relação ancestral e, também, sua paixão pela dança, que lhe permitia o reconhecimentos dos corpos pretos na sociedade como forma de resistência, com beleza e firmeza. O sorriso, e o brilho no olhar eram suas características principais. Mabel era vaidosa, encantava-se com a vida e a vivia com uma intensidade única e pura. Transcendia ao cantar, dançar, ao defender seus pontos de vista, principalmente quando o assunto era o combate à violência contra mulher.
Antes de se tornar assistente social, Mabel trabalhava na Telesp ( Telecomunicações de São Paulo) e desejava cursar uma Universidade, porém, esse era um sonho distante para uma mulher negra, periférica, chefe de família e com dois filhos. Mesmo diante de tanta adversidade, ela fez esse sonho ser concreto. Inicialmente, queria cursar Direito, pois, sempre questionou as injustiças que presenciava frequentemente na Brasilândia e em outros espaços que frequentava. Boêmia que era, em uma conversa num bar regado a um bom samba, foi apresentada ao Serviço Social por uma grande amiga. No começo, Mabel relutou, queria ser promotora de justiça, mas, como era curiosa e adorava desafios, foi atrás de conhecer melhor essa profissão, tendo, no ano seguinte, ingressado no Serviço Social da PUC/SP e “brigado” por não ter sido apresentada à profissão antes.
O Serviço Social que ganhou com essa escolha de Mabel, e ela se tornou uma referência no âmbito profissional – fato que dispensa quaisquer outros comentários.
Foi militante de diversas organizações do Movimento Negro e de Mulheres Negras: dos Agentes de Pastoral Negros, estagiária do antigo Programa de Saúde do Geledés – Instituto da Mulher Negra, e fundadora da Fala Preta – Organização de Mulheres Negras, onde participou de grupos de reflexão para mulheres negras para o enfrentamento da violência, com base no modelo do Projeto Nacional de Saúde das Mulheres Negras de Atlanta, além de projetos educativos sobre saúde sexual e reprodutiva para jovens e mulheres.
Na área acadêmica, graduou-se em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP (1996), espaço em que prosseguiu com seus estudos: mestre em Antropologia Social (2005) com bolsa do Programa Internacional de Bolsas de Pós-Graduação da Fundação Ford e Pesquisadora com Bolsa FAPESP na pesquisa realizada sobre violência urbana, em parceria com o Centro de Referência e Apoio às vítimas de violência urbana. Atualmente, era doutoranda em Antropologia Social (2018) com bolsa do Programa CAPES/PROSUC.
Sua pesquisa de Mestrado teve o enfoque na violência urbana e doméstica com recorte étnico-racial e de gênero.
Teve experiência profissional na formação de professores na temática étnico-racial, foi professora monitora no Projeto Educando pela Diferença Para Igualdade da Universidade Federal de São Carlos- UFSCar (2005-2007); foi, também, Assistente Social no Hospital da Universidade Federal de São Paulo – UNIFESP/Departamento de Psiquiatria – Projeto Quixote; atuou na qualificação de profissionais da Rede de Atenção à Mulher em situação de Violência da Coordenadoria Especial da Mulher da Prefeitura de São Paulo; foi docente no Curso de Serviço Social/UNG de 2008 – 2016, coordenadora do Núcleo de Políticas Sociais Milton Santos/UNG de 2010 – 2014 e na pós-Graduação em Serviço Social UNG/Universidade Guarulhos 2014-2015. Desde 2014, era Docente na Graduação e Pós Graduação da FAPSS – Faculdade Paulista de Serviço Social de São Paulo, onde também coordenava o Núcleo de Estudo e Pesquisa das Relações Raciais e Serviço Social.
Na Prefeitura de Guarulhos, desde 2006 atuava como assistente social, contribuindo ativamente para a implantação das ações afirmativas para as populações negra, indígena, cigana e para as religiões de matrizes africanas do município, ampliando assim a compreensão da máquina pública para o entendimento do racismo enquanto estruturante em nossa sociedade. Participou do processo de construção da antiga Coordenadoria da Mulher e da Igualdade Racial de Guarulhos e, após o desmembramento das áreas, permaneceu na Coordenadoria da Igualdade Racial, exercendo diversas funções de Gerência, de formação e representação política.
Trabalhou arduamente na formulação das primeiras políticas de Gênero e Igualdade Racial, na Consolidação da Seção Técnica de Diversidade, Gênero e Igualdade Racial – dentro da Secretaria Municipal de Educação – e na Formação de servidoras/es públicas/os para o acolhimento mais humanizado à população negra. Nos últimos anos, era Assistente Social na Subsecretaria da Igualdade Racial da Prefeitura de Guarulhos, na função de professora, elaborando, organizando e ministrando cursos, palestras e oficinas em equipe multidisciplinar para servidores/as acerca da temática étnico-racial e do racismo institucional como elemento constitutivo na condição de vulnerabilidade das mulheres e homens negros que acessam as políticas sociais, contribuindo para o enfrentamento às situações de violência doméstica e urbana e suas interfaces. Na Coordenadoria também estabeleceu forte relações com as Casas de axé, (terreiros, ilê,) e com outros grupos étnicos (os povos indígenas e ciganos) e teve um cuidado fundamental com os povos refugiados, em especial, os grupos étnicos negros como haitianos, congoleses, nigerianos.
Teve grande importância na docência, em cursos de movimentos populares, como cursinhos comunitários e no Projeto ‘Promotoras Legais Populares’; contribuiu com a Fundação do Conselho Municipal de Igualdade Racial (COMPIR); atuou ativamente no Conselho Municipal da Mulher; contribuiu na organização das Conferências de Igualdade Racial (Municipais, Regionais e Estaduais) e na consolidação do Fórum Intergovernamental de Promoção da Igualdade Racial do Estado de São Paulo, como articuladora. Na incansável luta por reparações, contribuiu para a elaboração da Lei de Cotas Raciais no serviço público municipal e no enfrentamento ao racismo institucional dentro do legislativo. Contribuiu com a construção e prestou atendimento no Serviço SOS Racismo, que atendia vítimas de racismo através de equipe multidisciplinar.
Na Universidade de Guarulhos, estruturou e consolidou o Núcleo de Estudos Afrobrasileiro, Indígena e Comunidades Tradicionais Milton Santos (NEABIT), no qual orientou pesquisas e debates relacionados às relações étnicos raciais. Organizou a disciplina Gênero Raça e Etnia, com ementa que foi utilizada até 2º semestre de 2018, tendo como destaques textos e materiais de Sueli Carneiro, Roseli Rocha, Magali de Almeida, Abdias do Nascimento, Clovis Moura, entre outras obras personalidades negras. Em 2019, a instituição transformou a disciplina em modalidade EAD, apagando a construção histórica do coletivo negro que ali esteve, mas, com resistência, o Núcleo continuou a tratar de pesquisas importantes que abordaram genocídio, feminismo negro, entre outras questões.
Sua contribuição no CRESS/SP é antiga, cheia de altos e baixos. Nos últimos anos, Mabel chamava a atenção para a pauta étnico-racial como estruturante das relações sociais na sociedade brasileira, foi fundamental para ratificar a defesa política nessa direção e culminar na construção coletiva da campanha do Conjunto CFESS/CRESS “Assistentes Sociais no Combate ao Racismo”. Trabalhou esse tema com os/as funcionários/as do CRESS/SP em 2018, quando cativou todo mundo. Viajou o interior do Estado, a convite das seccionais do CRESS-SP, e sempre se fazia presente nas discussões.
Uma das maiores características dessa grande mulher era seu coração, uma pessoa cheia de sentimentos, de uma solidariedade que envolvia carinho, respeito, responsabilidade, paixão pelo samba e pela MPB, era muito ligada à família, ao movimento negro e a integração dos trabalhadores autônomos nas feiras livres e atividades.
Assim como em sua vida particular, na docência, Mabel era doce, batalhadora, de riso fácil e opinião forte – ensinou que um sorriso também era uma manifestação de extrema grandeza. Tinha tinha um jeito especial, era capaz de cativar e ‘dar broncas’ apenas com o seu sorriso. Existem inúmeros adjetivos que podem contemplar sua existência, mas a intensidade é capaz de resumir todos eles. Seja no amor por seus familiares, estudantes e companheiras/os de profissão ou na energia com a qual ensinava, MABEL ERA INTENSA!
Por conta dessa intensidade e do prazer que tinha em disseminar o conhecimento adquirido, sempre mostrou aos/às estudantes algo que era muito além do que a grade curricular exigia e comportava. Mabel queria, de fato, contribuir no processo de constituir um pensamento crítico, para que, assim, seus/suas estudantes pudessem combater todas as formas de discriminação.
O núcleo de relações étnico-raciais Carolina Maria de Jesus é a prova disso. Esse espaço foi construído por ela, juntamente com a brilhante amiga e professora Márcia Campos Eurico, e foi pensado para ser mais que um lugar voltado ao ensino teórico. O núcleo é um espaço de resistência, de pesquisa e de combate ao racismo, mas principalmente, de troca de afeto. Esse espaço gerou a sensação de pertencimento que, por vezes, é negado ao povo!
Entre aqueles que conviveram com Mabel na faculdade, prevalece o consenso de que todas as pessoas que olharam com atenção para sua passagem em suas vidas mudaram o seu modo de ver o mundo. Mabel era isso, essa revolução em forma de mulher. Ao mesmo tempo que era calmaria, também era exigência. Aliás, exigência? Seria essa a palavra certa para definir alguém que realmente acreditava na potencialidade de seus/suas estudantes? O nome disso poderia ser, talvez, zelo. Essa era a sua forma de dizer “eu estou aqui, acredito em você e pode contar comigo no que for preciso”. Sim, Mabel era essa fortaleza que nos mantinha de pé, esse ser que impulsionava as nossas vidas.
A Mabel era tão forte que pairava no imaginário a ideia de que ela seria corporalmente imortal. Seu corpo realmente nos deixou numa manhã de domingo (01/12), porém, sua história prevalecerá! Quando pensamos em amor, força, luta e defesa por uma sociedade igualitária, pensamos em Mabel e, o não apagamento dessa história, é uma das formas pelas quais ela se mantém viva em nós. Em suas próprias palavras, em sua última passagem pela FAPSS: “Para provocar mudanças é preciso provocar a mente e o coração”.
Mabel conquistou mentes, pessoas, grupos e deixa seu legado para o Serviço Social brasileiro, comprometido com a luta antirracista, comprometido com a direção estratégica do projeto ético político, em defesa da classe trabalhadora!
Mabel, presente! Hoje e sempre!
Encantou – Por Iran Marques , Poeta cordelista
“Maria Isabel de Assis,
Assistimos um pouco do teu show,
no palco dessa vida,
Que linda!.
Na academia,
No cotidiano profissional.
Quantas vidas por ti enegrecidas.
Negra.
Um sorriso negro,
Quantos abraços Negros,
Mestra, por pouco Doutora.
Quanta contribuição,
Quantas possibilidades,
Nos destes de transformação,
O nosso mundo mudou,
Professora,
Tudo isso foi “culpa tua”.
Que responsabilidade nos deixastes.
Como agora enfrentar,
Essa sociedade racista, homofóbica, machista, sem ti?…
Sim…
Tu nos responderia com teu lindo sorriso:
Sobre isso, eu já te ensinei…
Teu legado está cada uma,
Que por ti,
Foi e encantada.
Mabel,
Maria,
Isabel,
de Assis,
Tu cantou, dançou, ensinou,
A vida amou,
Maria Isabel de Assis,
Tu nos encantou.”
Contribuíram com essa Femenagem* as companheiras:
Augusta Nunes dos Santos – Assistente Social
Catarina Daniel da Cruz – Graduanda em Serviço Social pela FAPSS-SP
Cintia Neli – Assistente Social
Deise Benedito – Bacharel em direito
Edna Roland – Psicóloga
Sandra Paulino – Assistente Social e Docente
Simone dos Santos – Assistente Social
Tatiane Eigenmann Justo – Psicóloga
Iran Marques – Assistente Social e Poeta
*Adotamos o termo femenagem para valorizar a dimensão de gênero e romper com a lógica machista também na nossa linguagem.