Confira a entrevista com a professora Joaquina Barata Teixeira concedida ao Jornal Ação#83. Ela é mestre em planejamento do desenvolvimento (NAEA/UFPA), especialista em administração universitária pelo Instituto de Gestão e Liderança Universitária (IGLU), membro do Comitê Executivo da International Federation of Social Workers (IFSW), cocoordenadora do Comitê Mercosul de Organizações Profissionais de Serviço Social e professora adjunta IV da UFPA (aposentada). Ela foi vice-presidente do CFESS na gestão 2002-2005 e fez parte do Conselho Fiscal na gestão 2005-2008.
Viver para lutar
Em 2016, o Serviço Social brasileiro completa 80 anos. Se pudéssemos fazer um balanço dessa história, qual seria?
O Serviço Social brasileiro, em seus 80 anos de história (perto de um século), avançou em formidáveis conquistas, que confirmam a afirmação de Lukács em sua obra Ontologia do Ser Social, de 1979, quando diz que toda atividade humana tende a ganhar, com seu exercício contínuo, graus superiores de realização e complexidade. Não seria diferente com o Serviço Social. É uma profissão que, apesar de todas as condições adversas ocasionadas por essa ordem social que concentra riqueza, propriedade e poder nas mãos de poucos/as, apesar de seu destino original contraditório, “apesar de ter nascido para assistir, passou a viver para lutar”, como diz nosso colega Edval Campos, professor da Universidade Federal do Pará (UFPA), em título de apresentação de suas palestras proferidas em maio deste ano em Porto Velho (RO), Barcarena, Castanhal e Assembleia Legislativa (PA). A dinâmica social pautada pela luta de classes redesenhou sua trajetória e instituiu uma profissão que, como também ele afirma e eu concordo, não tem outra opção senão ser “ousada, corajosa e progressista”, principalmente na América Latina.
Como a senhora avalia o legado que o Serviço Social deixou para a sociedade brasileira nesses 80 anos?
Seis blocos de identificação nos apontam o legado dessa profissão em seu percurso ascendente:
- No campo da formação, o Serviço Social avançou extraordinariamente em seu universo conceitual e categorial. Procedeu rupturas com as vertentes conservadoras das ciências sociais, consagrou e consolidou essa ruptura na formulação e aprovação de avançadas diretrizes curriculares para o magistério do Serviço Social em todo o território nacional. Diretrizes que expressam a busca de apropriação do que de mais avançado produziu o pensamento social crítico. E nessa apropriação fez sua opção: ficar ao lado do trabalho e não do capital na luta social.
- O Serviço Social passou a ser reconhecido, a partir da década de 1980, como um dinâmico campo de pesquisa e produção acadêmica, gerado nas pós-graduações e até no âmbito do exercício profissional, instituindo a pós-graduação acadêmica em todos os níveis. Como afirmou Elisabete Borgianni, em 2006: “A produção acadêmica do Serviço Social brasileiro é hoje referência para os trabalhadores sociais da América Latina, de Portugal e dos países africanos de língua portuguesa”.
- O Serviço Social ganhou estatura, não só na execução como na formulação, planejamento e gestão de políticas públicas, alçando funções de comando e liderança em vários espaços dos poderes Executivo e Legislativo: nos Ministérios, nas Secretarias, nas universidades e ocupando espaços políticos no parlamento.
- O Serviço Social também expandiu enormemente suas funções e responsabilidades ocupacionais para além do clássico campo da seguridade social, como meio ambiente, etnias (onde se inclui a questão indígena), questão agrária, impactos sociais dos grandes projetos, gestão de projetos, planejamento, orçamentos participativos, cooperativismo, controle social etc.
- No campo dos instrumentos jurídico-políticos, consolidamos no Brasil marcos institucionais que sedimentam a base legal da profissão: uma lei de regulamentação profissional e um avançado e reformulado Código de Ética. Além disso, contribuímos para a criação de uma base jurídica para a inclusão da Política da Assistência Social como direito e como Política de Estado no País, quer por meio da Constituição de 1988, quer por meio da LOAS, das NOBS e agora do SUAS.
- O Serviço Social também se organizou em termos profissionais e políticos, em âmbitos local, regional, continental e mundial, tanto no campo da formação quanto do exercício profissional, consolidando entidades que atuam de forma responsável e democrática, antenadas com o movimento político interno e externo e emitindo posicionamentos identificados com os movimentos sociais, com a luta dos/as trabalhadores/as, dos/as pobres e segundo os mais avançados princípios e lutas da humanidade. No âmbito internacional do exercício profissional latino-americano, foi uma conquista obtida com a contribuição do Brasil, a organização do Comitê Mercosul, que evoluiu para a organização latino-americana hoje denominada COLACATS (12 países) e a formação da ALAETS (hoje sendo refundada com o nome de Fórum Latino-Americano de Trabalhadores Sociais). No âmbito internacional, temos a International Federation of Social Workers, de cujo Comitê Executivo o Brasil participou em três mandatos.
Não são conquistas triviais e, por isso, devemos nos orgulhar delas, sabendo que abriram caminho para o presente e para o futuro, arrancaram possibilidades, favoreceram perspectivas e contribuíram para consolidar o Serviço Social brasileiro.
As várias tendências surgidas no Serviço Social ao longo dessa história têm rebatimentos até hoje na profissão e na sociedade. Como a senhora evidencia a luta pela ruptura com o conservadorismo, presente desde a gênese dessa profissão?
É um embate permanente. A luta de classes reverbera nas teorias e metodologias das ciências humanas e sociais aplicadas. No caso do Serviço Social, vale especificar que o período anterior à ditadura militar, (entre 1960 e 1963), quando muitos/as estudantes e profissionais ainda não tinham nascido, mas eu sim e era estudante de Serviço Social, foi palco de intenso processo de politização, mobilização e luta apaixonada, envolvendo estudantes e sindicatos no mundo inteiro, inclusive América Latina e Brasil, ante o ideário comunista como possibilidade concreta de transformação econômica, social e cultural (haja vista a revolução cubana e as lutas de Che Guevara na América Latina). Tal conjuntura reverberou no já então curso de Serviço Social, no início da década de 1960. Foi o momento da reconceituação no Serviço Social, quando entraram as primeiras manifestações de contestação às teorias conservadoras ensinadas nas escolas de Serviço Social, cujas formulações expressavam o pensamento da classe dominante da época, para quem os/as pobres, os/as desempregados/as e os/as desvalidos/as eram ‘desajustados/as’, daí que propunham o trabalho social como ‘ajustamento’. A Associação Latino-Americana de Escolas de Trabalho Social (ALAETS) e o Centro Latino-Americano de Trabalho Social (CELATS), organizações hoje extintas, eram formadoras do pensamento acadêmico em seu âmbito e difundiam um Serviço Social reconceituado. Debates e conflitos eram frequentes entre estudantes e professores/as de Serviço Social naquela época.
Muitos contextos históricos foram vividos pelos sujeitos do Serviço Social no Brasil, sendo um deles de grande destaque: o período da ditadura militar. Como a senhora avalia a inserção dos/as assistentes sociais nesse período para as lutas pela democracia e recusa do autoritarismo no País?
A ditadura militar interrompeu o processo ascendente (tanto da sociedade quanto da profissão), de forma implacável e violenta em 1964, inaugurando uma era de dor, tortura, repressão, medo, coragem, atos covardes, atos heroicos, cooptação, rendição, valorosos heroísmos e renúncias pessoais de militantes, entre os/as quais estudantes e profissionais de Serviço Social, que foram encarcerados/as no período em todas as regiões brasileiras, sobreviveram e passaram a lutar pelo processo de democratização do País. Nas universidades, versões do positivismo, pragmatismo, funcionalismo e fenomenologia persistiram no período e começou-se a abrir caminho ao pós-modernismo, que viria a florescer e ganhar visibilidade como superestrutura do neoliberalismo. Mas antes mesmo que o regime de arbítrio encerrasse seu ciclo, a teoria marxista era ensinada nas escolas de Serviço Social e tivemos no Conjunto CFESS/CRESS a virada de 1979.
Atualmente, há duas preocupações: uma é a ascensão das formulações pós-modernas no campo teórico da formação dos/as intelectuais brasileiros/as, entre eles/as, os/as assistentes sociais. E sabemos que essas formulações vêm constituindo-se no arcabouço conceitual neoconservador do capitalismo, especialmente em sua forma neoliberal, com sua recusa às causas globais subjacentes à noção de luta de classes, sua rejeição à visão estruturante e à dimensão de totalidade, sua ruptura com a noção de projeto societário e sua apologia ao micro-organismo social.
Também naquele período, na profissão, temos um marco importante, que é o Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais, ocorrido em São Paulo, em 1979, que ficou conhecido como o Congresso da Virada. O que ele significou para o desenvolvimento do Serviço Social no Brasil?
O Congresso da Virada foi um marco na criação de uma identidade coletiva para a profissão, inscrita na luta contra-hegemônica e na abertura de um caminho para o que viria a florescer na década de 1990, isto é, a explicitação de um projeto ético-político profissional comprometido com a emancipação humana.
É sabido que a senhora é uma figura respeitada e querida na profissão e de reconhecimento expressivo. Como é fazer parte dessa história?
Sou mesmo? Há grandes figuras respeitadas e queridas na profissão, que percorreram uma trajetória de muito trabalho, muito estudo, muita luta, muitas horas de sono perdidas, muitas renúncias, sacrifícios familiares, enfrentamento com o poder instituído e até prejuízos pessoais. Gerações e gerações de assistentes sociais percorreram e percorrem esse caminho, alguns/algumas já falecidos/as, mas que deixaram um legado que permanece vivo na profissão. Se me reconhecem entre eles/as, só tenho que agradecer e me orgulhar de fazer parte dessa história. É um reconhecimento contra-hegemônico, que consagra o trabalho e a luta, que sobrevive em oposição à cultura dominante da ordem social, que só confere celebridade aos/às que concentram a propriedade dos meios de produção, donos/as do dinheiro e do poder oriundo da apropriação do valor trabalho. Espero que os/as atuais estudantes e futuros/as profissionais nos superem e continuem construindo a história do combate à desigualdade social e aos preconceitos que nos envergonham. Isso tem que mudar.