A assistente social Camila Gibin Melo, da Direção Estadual do CRESS-SP, acredita que, mais do que defender um marco normativo, é preciso lutar concretamente pelas crianças e adolescentes do Brasil. Na entrevista para o site, Camila faz essa e outras reflexões, apostando no Serviço Social como um dos protagonistas de mudanças urgentes
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) completou 30 anos no último dia 13 de julho. Depois de três décadas, o marco normativo entendido como a maior referência no campo dos direitos de crianças e adolescentes no Brasil segue enfrentando grandes dificuldades na proteção da infância e da juventude brasileiras.A terceirização das políticas para a infância e juventude e o aumento do encarceramento e genocídio da juventude, especialmente das crianças e adolescentes pretos/as e indígenas, aparecem como uma atualização de problemas que, até hoje, não conseguiram ser superados.
Para a assistente social Camila Gibin Melo, Conselheira e membro da Direção Estadual do Conselho Regional de Serviço Social de São Paulo — 9ª Região (CRESS-SP), a defesa “de cima para baixo” do ECA não dá conta das emergências populares atuais e “fica engessada a uma luta institucionalizada que já demonstrou o seu limite”. É preciso defender um outro projeto de sociedade, acredita Camila. “Só defendendo um projeto anticapitalista será possível protegermos integralmente a infância e a juventude”, afirma.
Essas e outras reflexões sobre o ECA, as dificuldades para o exercício dos direitos e o desenvolvimento humano plenos das crianças e dos/as adolescentes no país, e como assistentes sociais podem — e devem — contribuir na superação desses obstáculos vieram à tona na entrevista que o site do CRESS-SP fez com a Conselheira.
CRESS-SP: No exercício profissional de assistentes sociais, que situações envolvendo crianças e adolescentes são as mais recorrentes?
Camila Gibin Melo: As/os assistentes sociais atuam predominantemente na formulação, planejamento e execução de políticas públicas, as quais são asseguradas pela Constituição Federal de 1988. Ocorre que esses direitos previstos se realizam de modo distinto a depender da condição econômica de cada sujeito. E essa situação também atravessa a vida das crianças e dos/as adolescentes, havendo uma distinção entre aqueles/as que são filhos/as das elites e os/as que são filhos/as dos/as trabalhadores/as, assim como entre aqueles/as que são brancos/as e aqueles/as que são pretos/as e indígenas.
No exercício profissional, os/as assistentes sociais atuam especialmente com a infância filha da classe trabalhadora, compondo equipes de serviços específicos à infância, como centros de convivência para crianças e adolescentes, centros profissionalizantes, serviços de proteção a crianças vítimas de violência, serviços de abordagem social a crianças e adolescentes em situação de rua, centros de atenção psicossocial, serviços de acolhimento institucional, atendimento e acompanhamento infantojuvenil no campo sociojurídico, acompanhamento de adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa, entre outros.
Apesar das especificidades de cada um dos serviços listados, temos a presença de traços comuns entre as crianças e os/as adolescentes atendidos/as: filhos/as de trabalhadores/as, boa parte em condições de extrema pobreza, negros/as e indígenas, e alvos da violência policial.
CRESS-SP: O ECA completa 30 anos em 2020. O documento ainda dá conta de atender às demandas para a garantia dos direitos das crianças e dos/as adolescentes brasileiros/as de hoje?
Camila: São inúmeros os trabalhos de pesquisadores/as e os discursos de ativistas que colocam as dificuldades de transformação do cenário para o segmento na conta da permanência da chamada “cultura menorista”, referindo-se a práticas e legislações do Código de Menores de 1927 e 1979. Isso já nos revela a configuração dos debates sobre a infância atrelada à norma jurídica, e não ao seu aspecto imbricado nas relações estruturantes da sociedade de classes.
Compreender a análise sobre a situação da infância pelo viés da chamada cultura menorista direciona à consolidação de um ideário de transformação cultural, supondo que a alternativa para a melhoria esteja na mudança cultural-comportamental dos operadores do direito e do executivo, para que, desta forma, venham a superar suas práticas “antiquadas” e as substituir pelo novo paradigma “Proteção Integral”, prevista no ECA. Avalio que pensar por esse viés é um equívoco analítico, pois idealiza a situação da infância e a própria infância, naturalizando a ideia de infância e do próprio direito, e retirando-a do seu movimento histórico e das relações da sociedade capitalista.
A melhoria da condição de vida das crianças e dos/as adolescentes só se dará com a superação da sociedade capitalista. Portanto, a barreira que impede a possibilidade de crianças e adolescentes se desenvolverem plenamente é a própria forma de organização produtiva, a qual defende o lucro em detrimento da vida. Vejamos o caso da formação das cidades, por exemplo. Como pensar a defesa da infância em espaços territoriais verticalizados, organizados pelo e para o mercado, e não para as relações sociais? Como pensar em garantir proteção em espaços que impedem o desenvolvimento da autonomia?
Em 1972, no bairro De Pijp, em Amsterdã, as crianças realizaram manifestações contra os carros nas ruas, exigindo ruas de lazer. Essa experiência foi registrada em vídeo, e é possível encontrá-lo para conhecermos e aprofundarmos esse debate (https://youtu.be/YY6PQAI4TZE; fonte: https://comkids.com.br/amsterda-1972-queremos-uma-rua-para-brincar/). Mas não é uma particularidade de uma cidade do centro capitalista. O fenômeno dos rolezinhos, aqui no Brasil, também revela isso: a juventude quer a cidade!
Afinal de contas, o que seria a chamada Proteção Integral em territórios feitos para a circulação de mercadorias e para que apresentem a si mesmos como tal? Os direitos sociais no contexto capitalista latino-americano, entre eles os próprios direitos em defesa da infância, têm sido cada vez mais mercantilizados. Isso significa que a preocupação final da mercantilização dos direitos da infância não é a infância em si, mas, sim, o quanto em nome da infância é possível lucrar.
CRESS-SP: De 1990 para cá, que desafios foram superados e quais ainda não foram?
Camila: Seria uma violência contra todos os meninos e meninas assassinados, presos e que vivem o fenômeno da fome afirmar que os desafios foram superados. Não só não foram superados, como foram atualizados a um novo formato de acumulação e expropriação capitalista que se utiliza da própria infância para manter a existência do capitalismo. Podemos discorrer, mesmo que brevemente, sobre dois aspectos que apresentam essa atualização: a terceirização das políticas para a infância e juventude e o aumento do encarceramento e genocídio da juventude.
Sobre o primeiro, é importante salientar que muitos serviços para a infância se encontram organizados a partir da terceirização dos serviços públicos. Para que tenhamos ideia, na cidade de São Paulo, 85% da Educação Infantil é gerida por Organizações da Sociedade Civil (OSCs) em contrato de “parceria” com a Prefeitura Municipal. Na política de assistência não é diferente, já que 95% dos serviços são também executados por OSCs1, sendo que os serviços para crianças e adolescentes compõem este percentual junto a outros serviços que atendem os demais segmentos da população. Na Saúde, política responsável pelos CAPS (Centros de Atenção Psicossocial Infantojuvenil), esse cenário se repete. Ou seja, a infância e a juventude tornaram-se um nicho favorável para empurrar o processo de desmantelamento das relações trabalhistas, por meio da terceirização, jogando os salários para baixo, além de, ao mesmo tempo, precarizar o atendimento às crianças e aos/às adolescentes. Poderíamos nos atrever a chamar de uma formulação de uma indústria da Proteção Integral, que, pelo slogan do cuidado à infância, extrai lucros pela via da terceirização. Foi assim que muitas organizações, Fundações cresceram e enriqueceram.
O segundo aspecto que aponto é a realidade do encarceramento e do genocídio, especialmente das crianças e adolescentes pretos/as e indígenas. O complexo industrial prisional se expandiu durante os anos, e o SINASE (Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo), como uma reedição da Política Nacional do Menor (aprovada na ditadura militar), pode ser compreendido nesse bojo. Em 2004, havia 11.8152 adolescentes privados de liberdade no país, saltando para 24.104 em 20183. Se contabilizarmos todas as medidas socioeducativas (meio aberto e meio fechado), os dados para o ano de 2004 seriam de 39.5782 adolescentes criminalizados e de 141.133 para 20183. Ao invés do Estado ser responsabilizado por não consolidar condições à existência plena da infância, apoia-se no ECA — junto com o SINASE — para se responsabilizar e judicializar ainda mais os/as adolescentes, através de formas punitivas. O que temos vivido, então, é o aumento da judicialização, que vai desde a interferência de juízes/as em campos que não correspondem à sua autoridade de conhecimento, como em questões pedagógicas, até a criminalização estendida não só a adolescentes, mas também a familiares e trabalhadores/as comprometidos/as na defesa dos/as atendidos/as.
O número de crianças e adolescentes assassinados pela polícia e pelas milícias também cresceu. São os “toucas-ninja”, como chamamos em São Paulo, que chegam armados, em carros ou motos, com toucas no rosto, e atiram a esmo, matando principalmente adolescentes. E em governos de violência explícita, como o de João Dória, governador de São Paulo, que em 2018 afirmou que “a polícia vai atirar pra matar”, em conjunto com os vários discursos violentos do atual presidente Jair Bolsonaro, há uma validação do extermínio da infância pobre.
Certamente há outros elementos, mas destaco esses dois aspectos para que possamos refletir com mais cuidado sobre como a realidade se apresenta para nós e a relação dela com o próprio ECA.
Como pensar a defesa da infância em espaços territoriais verticalizados, organizados pelo e para o mercado, e não para as relações sociais? Como pensar em garantir proteção em espaços que impedem o desenvolvimento da autonomia?
CRESS-SP: Como a Proteção Integral à Criança e à/ao Adolescente é contemplada pelo ECA?
Camila: Juridicamente, o princípio de Proteção Integral é contemplado a partir do momento em que se ratifica a concepção já prevista na CF/88 de que a família, a sociedade e o Estado devem prestar todo o auxílio para o pleno desenvolvimento e bem-estar, em todas as fases de crescimento, desses sujeitos.
CRESS-SP: Qual é a importância de defender o ECA? É preciso fortalecê-lo?
Camila: Temos uma tarefa anterior e mais urgente, que é a de defender um outro projeto de sociedade. Só defendendo um projeto anticapitalista será possível protegermos integralmente a infância e a juventude.
Precisamos defender a infância, é certo! E precisamos pensar em um mundo onde a infância faça parte dele em sua integralidade. E para isso, temos que dedicar a nossa energia vital ao fortalecimento de experiências populares, em que a defesa normativa possa ser um caminho a ser percorrido por essas experiências concretas, e não um fim em si mesma. Mais do que defender uma lei, é preciso construir e somar concretamente a lutas populares que sejam autônomas para elaborar quais caminhos devem percorrer e em quais devem apostar. A defesa “de cima para baixo” do ECA — ou por dentro das estruturas governamentais —, além de não garantir em seu conteúdo as emergências populares da atualidade, fica engessada a uma luta institucionalizada que já demonstrou o seu limite.
Se no período anterior à promulgação do ECA pulsavam vida e experiências promissoras em defesa da infância, com a sua promulgação e adequação institucional, as fichas foram apostadas em uma atuação por dentro das estruturas, o que se desdobrou no alinhamento das políticas para o segmento às orientações de instituições financeiras internacionais mais preocupadas com o desenvolvimento do capitalismo do que com as próprias crianças. Por isso, o que precisamos fortalecer são as lutas populares, junto com a classe trabalhadora, nos locais de trabalho e de moradia. É dessas experiências que podem sair frutos importantes.
CRESS-SP: Que papel assistentes sociais têm nesse cenário?
Camila: Nosso papel é lutar em defesa da infância, ao lado dos/as trabalhadores/as e de seus/suas filhos/as. Promover espaços de encontros, de afetos, de politização, de articulação e luta, carregados de ludicidade, porque é isto que a infância nos relembra a todo instante: que o lúdico é parte do humano, e que a luta exige criatividade! Precisamos de mais espaços coletivos, de atividades de bairro, ocupando as ruas, colocando as crianças e os/as adolescentes para dialogarem entre seus pares, para se forjarem politicamente nesses encontros. Seja no futebol de várzea, seja nas escolas, no baile funk, nos passeios dos centros de convivência, precisamos propor experiências qualificadas para que possam elaborar reflexões e sínteses em que se percebam na relação com a humanidade e com o importante papel que possuem no compromisso com um novo mundo.
E nas construções conjuntas, nos espaços sócio-ocupacionais, dispormo-nos a fazer parte do germe do novo, contribuindo para que crianças e adolescentes sejam reconhecidos mais do que como sujeitos de direitos, mas, sim, como sujeitos revolucionários.
Camila Gibin Melo é assistente social, Mestre pela PUC-SP, com dissertação intitulada “Entre muros e grilhões: criminologia crítica e a práxis de enfrentamento contra o Sistema Penal e pelo fim das prisões”, e doutoranda pela PUC-SP, com pesquisa sobre o processo de acumulação do capital e a relação com a situação da infância e da juventude brasileiras. Atuou como coordenadora em serviço de atendimento a pessoas criminalizadas pelo Estado (adultos e adolescentes) e medidas socioeducativas. Tem experiência na área da Assistência Social e dos Direitos Humanos e compõe o Coletivo dos Trabalhadores Terceirizados das Políticas Públicas (CTP). É Conselheira Estadual e membro da Diretoria Estadual do CRESS-SP na gestão Ampliações: Em defesa do Serviço Social, nos encontramos na luta!.
1 – FONTES: Secretaria Municipal de Educação de São Paulo (SME), em http://patiodigital.prefeitura.sp.gov.br/parcerias/ , e Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social (SMADS), em https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/assistencia_social/rede_socioassistencial/index.php?p=3200.
2 – FONTE: Levantamento estatístico da Subsecretaria de Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente da Secretaria Especial dos Direitos Humanos, 2004;
3 – FONTES: Levantamento Anual do SINASE 2018, do MDH, e Panorama da Execução dos
Programas Socioeducativos de Internação e Semiliberdade nos Estados Brasileiros de 2019, do Conselho Nacional do Ministério Público.