Em entrevista ao site do CRESS-SP, as assistentes sociais Patrícia Maria da Silva, Diretora Estadual do Conselho, e Jessica da Silva Francisco, indígena do Povo Pankararé e base do CRESS-SP, falaram sobre a votação do marco temporal no STF, do direito dos povos indígenas aos seus territórios e da atuação de assistentes sociais no movimento indígena
O CRESS-SP está acompanhando com muita atenção a votação no STF (Supremo Tribunal Federal) do chamado “marco temporal de ocupação”, critério pelo qual se exige a presença física dos povos indígenas no dia 5 de outubro de 1988 como condição para a demarcação de suas terras. Povos indígenas de todo o País estão organizados desde o início para pressionar a sua derrubada, mobilização que incluiu um grande acampamento em Brasília para acompanhar o processo.
O Conselho tem buscado se aproximar mais das pautas indígenas, tentando construir uma atuação mais efetiva nesse sentido. A partir, especialmente, da constituição, no âmbito do Comitê Assistentes Sociais no Combate ao Racismo, do Grupo de Trabalho (GT) Questão Indígena, o objetivo é aprofundar a leitura teórica e prática da atuação profissional dos/as assistentes sociais com a população indígena. O acompanhamento da votação no STF vem sendo feito por meio do GT, que integra assistentes sociais indígenas e, desde sua formação, no início deste ano, tem discutido a questão do marco temporal e suas implicações para a população indígena brasileira.
Em entrevista ao site do CRESS-SP, Patrícia Maria da Silva, Diretora Estadual do Conselho e membro do Comitê Assistentes Sociais no Combate ao Racismo, e Jessica da Silva Francisco, assistente social na CASAI-SP e indígena do Povo Pankararé (Glória/BA), base do CRESS-SP e participante do GT Questão Indígena, discorreram sobre o assunto. Elas também refletiram acerca da relação do direito à terra dos povos originários com diversas questões e com a atuação de assistentes sociais. Para Jessica, a categoria é a que mais apoia os movimentos indígenas, em uma aproximação positiva que vem crescendo, entre outros, graças ao trabalho desenvolvido por profissionais indígenas. Confira a conversa!
Site CRESS-SP: Como o Conselho tem acompanhado a votação do marco temporal no STF?
Patrícia Maria: O acompanhamento tem ocorrido no âmbito do Comitê Assistentes Sociais no Combate ao Racismo – GT Questão Indígena. Tal GT tomou forma no início do ano de 2021 e passou a realizar encontros mensais, ainda de forma on-line, devido à pandemia de COVID-19. São realizados debates, indicação de material bibliográfico e troca de saberes e vivências, pois temos assistentes sociais indígenas neste grupo. E, desde o início dos nossos encontros, temos discutido a questão do marco temporal e suas implicações para a população indígena do país.
CRESS-SP: Como avaliam o julgamento, até aqui, especialmente após o voto do ministro Edson Fachin, contra o marco temporal?
Jessica: Ainda é algo muito angustiante, mesmo tendo sido um voto a favor da nossa luta. Não sabemos o que nos espera.
CRESS-SP: E como avaliam a mobilização dos povos indígenas em torno da votação?
Patrícia Maria: Avaliando de fora, do lugar de uma pessoa que não é indígena, considero que temos muito o que aprender com a organização, mobilização e luta dos povos indígenas. Importante ressaltar que essa luta não é de hoje. Ela se dá desde a invasão portuguesa às terras brasileiras. Os povos indígenas, verdadeiros donos desta terra, lutam há mais de 500 anos, entre outros, pelo direito de existir.
Penso que a mobilização dos povos indígenas contra o marco temporal é uma importante lição para a sociedade brasileira sobre a luta por nossos direitos, luta por respeito, por dignidade, luta em defesa da vida. É uma mobilização histórica!
CRESS-SP: Qual é a expectativa, a partir de agora?
Jessica: Ainda fica aquele misto de ansiedade e medo. Sabemos que é algo incerto. Retornamos para os nossos locais de origem, cada um/a com as suas delegações, mas permanecemos discutindo sobre o caso e tentando expor a nossa realidade, trazendo essa discussão para o nosso dia a dia, para que os outros povos, as outras pessoas compreendam também qual é o nosso total interesse.
CRESS-SP: Como a questão do direito dos povos indígenas brasileiros aos seus territórios está presente na atuação de assistentes sociais?
Jessica: Atualmente, dentro do movimento, pude perceber o quanto cresceu o número de profissionais da assistência indígenas e o quanto isso é enriquecedor, tanto para o movimento quanto também na nossa luta por nossos direitos constitucionais.
Não dá para falar do movimento indígena, da nossa luta de terras, sem essa parceria, sem esse braço da própria assistência que tem colaborado tanto, contribuído tanto na nossa luta, no nosso movimento. Esse vínculo — o direito de terras com a atuação do/a profissional da assistência — é super presente. Acho, inclusive, que a classe do Serviço Social é a que está mais enraizada com a gente, lutando com a gente, fortalecendo o nosso movimento, a nossa luta.
CRESS-SP: A que questões fundamentais se relacionam o direito e a proteção das terras indígenas brasileiras?
Patrícia Maria: Penso que o direito e a proteção às terras indígenas estão diretamente ligados à defesa do direito à vida, e, pensando no Serviço Social, diretamente ligados à defesa dos princípios que norteiam nosso Código de Ética: defesa da liberdade; defesa intransigente dos direitos humanos e recusa do arbítrio e do autoritarismo; defesa da cidadania; defesa do aprofundamento da democracia; luta por justiça social; respeito à diversidade; garantia do pluralismo; construção de uma nova ordem societária; articulação com os movimentos de outras categorias profissionais que partilhem dos princípios de nosso Código e com a luta geral da classe trabalhadora; compromisso com a qualidade dos serviços prestados; não discriminar e não ser discriminada/o no exercício do Serviço Social.
A mobilização dos povos indígenas contra o marco temporal é uma importante lição para a sociedade brasileira sobre a luta por nossos direitos, luta por respeito, por dignidade, luta em defesa da vida” — Patrícia Maria da Silva
CRESS-SP: É possível fazer um recorte da situação das terras indígenas no Estado de São Paulo?
Jessica: O Estado de São Paulo é totalmente território indígena. Eu posso até dizer que São Paulo é um dos locais com o maior número de indígenas, e de diversas etnias. Guarulhos mesmo, onde eu resido, é um local totalmente populoso de indígenas. Há os Pankararu, Pankararé, Fulni-ô, Kaimbé… Temos também que desconstruir essa visão de que só há indígenas em aldeias e em outros estados. São Paulo é um local de indígenas. Outros locais são o Jaraguá, que tem o maior número de Guaranis, Parelheiros, a região de Ubatuba, Peruíbe, Miracatu… Sobre essas questões de terra, ainda há muita luta. Inclusive, o território de Guarulhos ainda tem uma questão muito forte em busca de conquistar seu território com o processo de demarcação. Na verdade, todos os locais que envolvem população indígena são locais de muita luta.
CRESS-SP: De que forma assistentes sociais paulistas buscam atender esses povos nas questões relacionadas ao direito às terras indígenas?
Jessica: Essa parte de orientação, de fortalecimento do nosso movimento é muito presente nos/as profissionais. Entendemos que há esse fortalecimento, mas que, às vezes, não é tão direto. Acaba sendo mais indiretamente devido à questão da distância. Porque aqui temos territórios, mas a maioria dos da cidade de São Paulo já foi demarcada.
CRESS-SP: Que problemas sociais podem ser identificados como resultantes do desrespeito às terras indígenas?
Jessica: A grande violência contra os povos, dentro dos seus territórios e fora deles. A invasão desses territórios para a própria exploração. Seja dentro desse espaço, seja no contexto urbano, porque os/as indígenas de fora também passam por esse tipo de situação, extremamente desconfortável, em que a sociedade tem um padrão de indígena muito enraizado. Então, até para desconstruirmos isso é muito complicado.
E dentro do território isso também acontece demais, o desrespeito com a cultura, com a nossa realidade, com a nossa ancestralidade. É uma grande violência. Há muitas aldeias ainda que têm muito problema de saneamento básico… São grandes problemáticas que ainda precisam ser discutidas.
CRESS-SP: O que acreditam ser um caminho possível para a superação da questão das terras indígenas?
Jessica: A nossa luta é sempre por essa questão da terra, nossa luta é pelo nosso território. Eu acredito que uma das formas de evitar muitos conflitos é acreditando e respeitando esses espaços, respeitando a cultura, a ancestralidade, a forma de viver dos povos indígenas. Esse é um grande caminho para grandes coisas, para todos os projetos que envolvam os povos indígenas darem certo, respeitando toda a nossa forma de viver, de ter a nossa própria cultura, dentro do nosso território indígena.
CRESS-SP: O Conselho aposta e incentiva o engajamento de assistentes sociais na defesa do direito às terras dos povos originários?
Patrícia Maria: Aponto que a atuação mais efetiva do CRESS-SP nas questões da população indígena deu-se a partir do ano de 2019, por meio de ações do Comitê Assistentes Sociais no Combate ao Racismo. Assim, enquanto Conselho, ainda estamos distantes desse debate, é preciso fazer essa autocrítica.
No entanto, a partir da constituição do GT entre 2020 e 2021, para aprofundar nossa leitura teórica e prática quanto à atuação profissional junto à população indígena, temos preenchido tal lacuna, no que nos compete, enquanto conselho de categoria profissional.
CRESS-SP: E como o Conselho busca atuar?
Patrícia Maria: Ampliando as discussões e os estudos que acontecem no GT Questão Indígena, aproximando a categoria profissional, por meio dos seus Núcleos Descentralizados (NUCRESS), deste debate tão relevante e articulando atividades conjuntas com outras entidades que representam a categoria profissional, tais como CFESS, ABEPSS e ENESSO.
CRESS-SP: Como assistentes sociais indígenas percebem a questão do direito à terra no cotidiano profissional?
Jessica: Com os/as parentes, percebemos que isso ainda é algo muito angustiante. Muitos povos têm os seus territórios demarcados, mas nos sensibilizamos como um todo. Por mais que o meu território seja demarcado, compreendo que o do/a outro/a parente não é, então é uma dor coletiva. Como assistentes sociais dentro dessa realidade e vindo dela, sentimos isso muito mais aflorado, porque tentamos encontrar mecanismos para orientar nossos/as parentes e fortalecer seus movimentos. Com os/as outros/as colegas da categoria, eu acho que ainda precisa ser discutida muita coisa sobre o movimento indígena, sobre a nossa prática, no nosso cotidiano. Mas hoje isso é muito mais articulado. Então, chamar nossos/as colegas para essa discussão é algo muito importante, e fortalecer esse movimento também. É enriquecedor, super valioso.
Ao mesmo tempo, para nós, como povos indígenas e profissionais da assistência, também é algo bem complicado. Há uma cobrança maior. Você não tem só o seu dever como profissional. Você também tem o dever com o seu povo e com os povos indígenas, porque você representa eles ali. Eu não estou só representando a Jessica, assistente social. Eu sou a Jessica, assistente social indígena.
Não dá para falar do movimento indígena, da nossa luta de terras, sem essa parceria, sem esse braço da própria assistência (…). Esse vínculo — o direito de terras com a atuação do/a profissional da assistência — é super presente” — Jessica da Silva Francisco