Webinário do CRESS-SP que celebrou o Dia do/a Assistente Social debateu o legado de resistência de povos indígenas e quilombolas, entre outros, e a atuação profissional de assistentes sociais para a efetivação dos direitos das populações originárias e tradicionais do Brasil
O webinário do CRESS-SP em comemoração ao Dia do/a Assistente Social, realizado na última sexta-feira de maio, dia 28/5, reuniu assistentes sociais do estado de São Paulo para celebrar a categoria e refletir sobre a atuação profissional na perspectiva da defesa dos direitos dos povos originários e comunidades tradicionais do Brasil. Sob o tema “Assistente social em defesa do direito à vida no campo e na cidade — pelos povos originários e comunidades tradicionais!”, o evento promovido em plataforma on-line, e transmitido ao vivo pelo canal do Conselho no YouTube, contou com palestras de Márcio Farias, psicólogo, professor do Celacc ECA/USP e autor de “Clóvis Moura e o Brasil: um ensaio crítico”, e Cynthia Franceska Cardoso, pesquisadora e assistente social de atuação com ênfase em políticas sociais e povos indígenas.
Juliana Santos Alves de Vasconcelos, assistente social e Diretora da Seccional de Santos do CRESS-SP, conduziu os trabalhos da noite e abriu o encontro destacando as campanhas do 15 de maio do Conjunto CFESS-CRESS, voltadas à valorização da profissão, das suas bandeiras de luta e ao que o Serviço Social pode oferecer à sociedade em defesa da efetivação dos direitos da população. Juliana falou da relevância do debate proposto em 2021 — “Há mais de 500 anos, sempre na linha de frente — Trabalho pela vida e resistência dos povos originários e comunidades tradicionais” — na conjuntura atual, especialmente no contexto da pandemia da COVID-19 e de luta pela saúde pública e pelas políticas sociais.
“É fundamental valorizar os povos originários e a resistência secular dos sujeitos que fazem parte deles, inclusive assistentes sociais. O mote do 15 de maio vem reafirmar o projeto ético-político profissional na defesa dos direitos dos povos originários e tradicionais, reforçando a inserção da categoria na luta e resistência junto às comunidades indígenas, quilombolas, ciganas, e muitas outras, que estão não só no campo, mas nas cidades. Essas comunidades vêm sendo excluídas dos direitos sociais, marginalizadas, expulsas de seus territórios, e, mesmo assim, seguem resistindo, na linha de frente, lutando por suas vidas e pela valorização e preservação de sua história e cultura”, enfatizou Juliana.
Muitos desses povos, lembrou a assistente social ainda que estejam na fila de prioridades da vacinação contra a COVID-19, veem, hoje, problemas seculares — como a insuficiência de políticas sociais, as sempre violentas invasões dos seus territórios e expulsão de suas terras, os despejos forçados e o preconceito — aprofundando-se na crise sanitária.
Palestras destacam resistência secular e protagonismo dos povos originários e tradicionais nas lutas sociais
As falas de Márcio e Cynthia reforçaram a urgência não apenas de ampliar esse debate na sociedade e no interior da categoria, mas também de traduzi-lo na prática, a partir de uma atuação profissional crítica, bem informada, que rompa radicalmente com a herança paternalista e racista do colonialismo e some à resistência e ao protagonismo dos povos originários e tradicionais na formação e na história — passada e contemporânea — do Brasil.
O legado dos quilombolas
Márcio Farias buscou enfatizar aspectos que parecem ser centrais na relação entre o capitalismo, a questão agrária e a questão racial no Brasil, chegando ao debate contemporâneo, em como esse tema se apresenta, hoje, para as comunidades tradicionais no país, partindo de alguns princípios estruturantes dessa relação. “O que precisa ser colocado na agenda na discussão contemporânea é que, nesse processo de expansão da sociedade do capital, de base escravista (…), há de se acrescentar um elemento importante que foi o processo de negação da estrutura colonial. O quilombo, nesse sentido, comparece como a expressão política mais complexa de um conjunto muito variado de respostas de africanos, indígenas”, apontou Márcio, acrescentando que, sobre a gênese da formação nacional, Clóvis Moura nos alerta que, durante o período colonial, houve as resistências, e, nesse sentido, o quilombo comparece como uma síntese das formas de organização mais complexas da formação nacional.
“A primeira expressão da negação, da contradição entre uma classe dominante e um setor subalternizado que contesta a ordem, foram os quilombos. No limite, portanto, a luta de classes brasileira emerge nessas condições, nessas circunstâncias, a expressão do início da nossa forma de ser enquanto classe trabalhadora”, expôs Márcio, questionando a leitura eurocêntrica que geralmente se tem da história da luta de classes no Brasil, que leva mais em conta as lutas do operariado, já no século XX, nos centros urbanos do Sudeste, e desconsidera um conjunto muito variado de lutas que antecederam as formas modernas de organização da classe.
O professor deu um panorama da evolução dos pensamentos que buscaram entender a formação do estado-nação brasileiro, com destaque, entre outros, para a concepção de Florestan Fernandes de que, no Brasil, quem levaria a cabo a luta por cidadania e direitos seriam “os de baixo”, os movimentos sociais, e não a burguesia, mas que as elites nacionais buscariam “sufocar” as lutas e impedir os avanços sociais, impondo um projeto de “circuito fechado” e usando o próprio Estado, de forma bastante coercitiva. Márcio argumentou que, no país, seja no campo ou na cidade, capital e trabalho têm na violência a sua grande mediação, o Estado operando, primeiramente, de forma violenta e truculenta.
“Ao emergirmos enquanto sujeitos políticos na luta por direitos, precisaremos entender que a natureza da elite não permite nenhum tipo de conciliação. Portanto, nós precisaríamos dar uma resposta à altura. Historicamente, foi a forma como os quilombolas responderam, e essa é a lembrança que nós precisamos ter no nosso horizonte de luta. Um povo que foi submetido à desumanização e respondeu com humanidade a esse processo a partir da luta. Não vieram aqui para sambar, fazer maracatu, ou nenhum outro tipo de expressão cultural. Estavam aqui submetidos a um processo brutal de escravidão, e, diante do seu sonho de liberdade, legaram-nos as lutas sociais que nos compõem enquanto povo rebelde na formação social brasileira”, concluiu Márcio Farias.
Subjugação secular e a necessidade de “lutar COM”
Cynthia Franceska compartilhou sua experiência profissional — como assistente social, acadêmica e pesquisadora — com os povos indígenas em diferentes territórios pelo Brasil. No Vale do Ribeira, onde cresceu e vive atualmente, a assistente social pôde testemunhar, desde cedo, a criminalização e a culpabilização dos povos originários e comunidades tradicionais pela sua existência, um retrato do que acontece no resto do país. A aproximação ao debate de forma mais interventora e o engajamento em defesa da vida e dos direitos sociais desses povos e comunidades vieram com o curso de Serviço Social, e, a partir daí, a pesquisa a levou até São Gabriel da Cachoeira — município com maior concentração de população indígena, com território de maior extensão geográfica do país — e o oeste do Paraná.
Em todas as regiões onde atuou, a assistente social identificou os mesmos problemas, com as mesmas raízes. “A assistência social e a previdência social são permeadas por relações sociais estabelecidas desde a invasão do território, que influenciam o nosso modo de ver e de pensar a atenção que vai ser dada aos povos indígenas pelo Estado e pela sociedade geral. Trazemos conosco — sociedade — um ranço exploratório, integracionista, homogeneizador, que influencia diretamente na atenção que o Estado dá à questão social indígena. Se a população indígena é demandatária, se ela demanda da assistência e da Previdência Social (na qualidade de Segurados Especiais), isso também termina por revelar o espaço que foi dado aos povos originários historicamente pelos poderes públicos e pela sociedade. Não foram dados a eles o respeito a seus costumes, a suas línguas, a suas visões de mundo, o direito à diferença, à equidade, à liberdade”, apontou, alertando, ainda, para a ofensiva, hoje, no Brasil, contra os povos originários.
Para Cynthia, o debate sobre os povos indígenas ainda é um pouco incipiente entre assistentes sociais e há a necessidade de a categoria se apropriar dele. Ela ressaltou o impacto positivo do diálogo horizontal tanto no trabalho de pesquisadora como no de assistente social, e enfatizou o quanto o Serviço Social pode contribuir para a construção de políticas e ações efetivas, que atendam às diversas especificidades dessas populações e de seus territórios, a partir, por exemplo, da escuta qualificada. “Aos povos originários — vemos agora nesse Governo muito mais fortemente — é vetado o exercício da cidadania, da autorrepresentatividade, da participação no processo de construção de políticas sociais que vão afetá-los diretamente. O que também tiramos disso é a importância da garantia de participação dos povos na formulação dessas políticas. Não dá para conversar sobre eles, temos que conversar COM eles. Não dá para falar a respeito dos povos originários sem eles, não dá para atuar, também, sem estabelecer esse mínimo de vínculo”, refletiu.
A assistente social avalia que a percepção de todos esses problemas expõe o quão cruel e dramática foi e continua sendo a subjugação secular a que são expostos os povos originários e as comunidades tradicionais no Brasil. “Isso nos mostra que os interesses econômicos e políticos escusos do agronegócio e do Estado brasileiro os acompanham há mais de cinco séculos. A resistência desses povos tem muito a nos ensinar enquanto seres humanos e profissionais. A existência desses povos só nos ensina a ter uma outra perspectiva de mundo, de próximo. É a maior lição que aprendemos todos os dias quando estamos junto a comunidades e povos tradicionais do Brasil”, concluiu.
Debate com público encerrou a noite
O público do evento participou ativamente via chat ao vivo com indagações que levantaram aspectos fundamentais para a atuação de assistentes sociais com os povos originários e tradicionais. Entre essas questões, a reverberação do pensamento eurocentrista também em setores progressistas, a destituição dos povos originários e tradicionais de seu lugar de sujeitos políticos, o escamoteamento dos problemas e um olhar deficitário para esses povos, limites institucionais para a intervenção do/a assistente social, formação profissional deficitária, gestões preconceituosas das políticas sociais e até mesmo atitudes de desresponsabilização.
As discussões ainda destacaram a relação com as tecnologias — em especial as TICs — e o protagonismo nas comunidades indígenas da população jovem, que, inclusive, se apropria dessas tecnologias para organizar as frentes de resistência de seus povos. Cynthia Franceska chamou atenção para o mito racista, colonialista de que o/a indígena com acesso a tecnologia, a formação, à Academia, que fala o português muito bem — além da sua língua — não é indígena. “Nós é que temos essa dificuldade de transitar entre outras culturas que não essa nossa etnocêntrica. Os povos originários não têm essa dificuldade, no sentido de que eles transitam na nossa cultura — obrigatoriamente, porque invadimos o território deles e continuamos invadindo cada dia mais —, mas eles conseguem estar aqui e ser eles mesmos. A quem beneficia esse tipo de discurso, quais são os interesses em perpetuar esse discurso contra os povos originários e comunidades tradicionais, nós dizendo quem eles são?”, questionou.
Lançamento de vídeo comemorativo
Completando a programação do webinário, o CRESS-SP lançou o vídeo “Nuvens de palavras”, resultado da enquete sobre o Dia do/a Assistente Social nas redes sociais, que perguntou aos/às profissionais “Qual a contribuição dos povos originários e comunidades tradicionais na construção do Serviço Social brasileiro?” e “Qual palavra te remete ao dia 15 de maio, Dia do/a Assistente Social?”.
Ideias como compromisso, superação, emancipação, esperança, esperançar, humanização, ética, responsabilidade social, dignidade, união, querer, força, reconstrução histórica, autonomia, empatia, conscientização, conquista, defensor/a da vida, colaboração, reconhecimento, persistência, batalhas, perseverança, regulamentação, equidade, resistência e justiça social apareceram nas respostas e inspiraram o vídeo produzido especialmente para a data.