Força originária
Em entrevista ao site do CRESS-SP, a técnica em enfermagem e assistente social Vanuza Kaimbe — primeira indígena vacinada contra a COVID-19 no Brasil — fala sobre sua trajetória, suas intervenções como profissional e como liderança indígena, e do poder feminino no mundo
Como a primeira indígena a ser vacinada contra a COVID-19 no Brasil, Vanuza Kaimbe ganhou projeção e levou com ela a esperança de sua aldeia e de todos os povos originários do país por dias melhores, com mais saúde e direitos. Uma luta, é sabido, que, para os/as indígenas brasileiros/as, antecede, em muito, a pandemia. “Depois de 521 anos, nós ainda somos discriminados/as, desrespeitados/as”, relata Vanuza.
Em entrevista para o site do CRESS-SP, a técnica em enfermagem e recém-formada em Serviço Social, com a potência genuína das melhores lideranças, compartilha um pouco da sua trajetória de mulher indígena, nordestina, brasileira. A sua história coincide com a de tantas e tantas mulheres, com um repertório construído pela superação de inúmeras dificuldades e barreiras derrubadas pela força de quem vive com solidariedade, empatia e na busca por justiça social.
Uma visão de vida herdada da mãe, sua maior referência feminina, que, certa vez, ensinou ao neto que o que fica é o mundo, nós passamos. E a mensagem de Vanuza no mês que celebra o Dia Internacional da Mulher é de que o mundo é feminino, a Terra — planeta — e a terra que habitamos e cultivamos, a natureza são femininas. “Que nós nos empoderemos disso e não aceitemos qualquer tipo de discriminação, de violência”, diz Vanuza.
Ao Serviço Social, ela faz um convite: “A gente não defende o desconhecido. Para que a gente tenha um mundo mais humanitário, mais igualitário, assistentes sociais e órgãos que regularizam essa profissão, aproximem-se do movimento indígena, da mulher indígena, conheçam o seu território, passem a conhecer uma aldeia para que a gente faça justiça social”.
CRESS-SP: Desde quando você está em Guarulhos, qual foi o seu itinerário até aqui?
Vanuza Kaimbe: Eu nasci no município de Euclides da Cunha, na aldeia Massacara, no sertão da Bahia. Vim para São Paulo com 17 anos, com a ideia de me formar enfermeira. Eu nem sabia que existia curso técnico, auxiliar, enfermeira padrão… Não sabia. Eu fui ao hospital, tinha cinco anos de idade, vi umas moças de branco, na recepção, e disse: “Mãe, eu ainda vou escrever rápido e ainda vou ser uma dessas moças”. Minha mãe falou assim: “Minha filha, nós moramos na aldeia, já foi difícil conseguir passar aqui no médico, tá distante, você não vai conseguir isso… Pensa em outra coisa”. “Não mãe, eu vou”. E eu vim para São Paulo pensando nisso. E com 30 anos fiquei apavorada: “E agora, quando eu vou fazer a Enfermagem se eu já estou chegando a 30 e depois eu não vou conseguir mais emprego?”. Enfim, aos 32, eu entrei na escola para fazer o curso técnico de enfermagem, aos 35 anos eu já estava trabalhando.
Cheguei a Guarulhos pela liderança indígena tupi Gilberto Awa. Ele era paciente na Casa de Apoio à Saúde Indígena (CASAI) onde eu trabalhava, eu o conheci lá em 2008, e ele me chamou para vir para o movimento indígena de Guarulhos. Eu relutei um tempo, porque eu tinha minha vida em São Paulo, cuidava da minha mãe, tinha um filho especial e não dava. Meu filho especial faleceu e eu resolvi vir. Em 2017, vim para fazer a retomada da aldeia multiétnica no Cabuçu, em Guarulhos (Aldeia Multiétnica Filhos Dessa Terra, no bairro Cabuçu, na cidade de Guarulhos/SP), e é onde eu resido até hoje.
Os/As indígenas que moram lá são de origem do Nordeste, em busca de moradia, de cultura, por não podermos voltar para nossas aldeias-mães. E nós decidimos que indígena é indígena em qualquer lugar, que o Brasil é terra indígena. Portanto, a gente fez a retomada e construiu a aldeia, que é uma reserva, uma terra de proteção ambiental, e lá a gente vive de forma a sustentar o meio ambiente, a protegê-lo, nossas casas são construídas artesanalmente, a gente não desmatou e está lá protegendo a Mata Atlântica, e cuidando. Fazemos um trabalho de reflorestar, com árvores frutíferas e nativas.
CRESS-SP: Como o Serviço Social entrou na sua vida?
Vanuza: Eu trabalhava na Casa de Apoio à Saúde Indígena (CASAI-SP) e para lá iam indígenas do Brasil inteiro. E a gente ia aos hospitais levar esses/as indígenas e pedia tratamento humanizado, respeitando a especificidade de cada povo. Nessas intervenções, e em todas as minhas intervenções, as pessoas falavam “Você é assistente social? É psicóloga?”, “O seu perfil é de psicóloga, de assistente social”.
Eu fui fazer um curso de enfermeira padrão e não tive condições de pagar. Aí, tem o Bolsa Pindorama (Programa Pindorama), na PUC-SP, há 18 anos, que dá bolsas para alunos/as indígenas de baixa renda. E eu procurei a PUC, com 45 anos de idade, para fazer o vestibular, porque eu encorajava, como liderança, as outras pessoas a fazerem o vestibular, e eu tinha medo, porque vinha de escola pública. Mas eu fiz, passei e foi a melhor decisão que eu tomei na minha vida, ter feito o Serviço Social. Isso me melhorou como pessoa, como ser humano e me transformou.
CRESS-SP: Como é a intervenção que você faz hoje?
Vanuza: Antes de entrar no Serviço Social, eu já fazia um trabalho, era Conselheira, pela parte do/a usuário/a, na UBS (Unidade Básica de Saúde; UBS Jardim Keralux), em São Paulo. Fui Conselheira durante seis anos. E aqui em Guarulhos, não foi diferente. Eu faço parte do Conselho Municipal de Saúde pela parte usuária e pela parte da população originária, pela população indígena, e também faço parte do Conselho Municipal de Políticas Públicas/Comissão de Políticas Públicas. Toda essa bagagem me leva a fazer uma intervenção, e a última, agora, foi na área da saúde, mesmo, para vacinar os/as indígenas do contexto urbano [contra a COVID-19].
Eu moro numa aldeia, mas é uma aldeia dentro de uma cidade. E eu fui observando que na Constituição Federal não tem nenhum artigo que diga que o/a indígena deixa de ser indígena porque está em contexto urbano, porque está na cidade. A gente começou a fazer um trabalho nas prefeituras, pedindo para vacinar os/as indígenas, porque os/as que estão na cidade têm mais vulnerabilidade do que aqueles/as que estão nas aldeias, porque a gente vive em situação de vulnerabilidade, a moradia é mais insalubre, há mais aglomeração e a gente vive do trabalho da informalidade. Vi que não era esse o caminho, porque eu não ia conseguir ir para 645 cidades daqui do Estado de São Paulo. Então eu parti para fazer um ofício para a Secretaria de Saúde (Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo — SES/SP), para a equipe de epidemiologia e para o Secretário de Saúde do Estado. Fiz esse documento, fiz um contexto contando tudo o que aconteceu, quantas pessoas já morreram daqui de São Paulo, quanto da população indígena vive aqui.
Pelo IBGE, 46% da população indígena vivem em contexto urbano, e para nós, 60%, porque muitos não se identificam. Quando são feitos os cadastros, ainda se coloca que é pardo, não se pergunta se é indígena, se é preto, se é amarelo, se é azul! As pessoas costumam dizer qual é a nossa identidade. Fiz um relatório e enviei para a SES. Esse documento foi negado. Passei para o movimento indígena nacional. O presidente do Conselho de Articulação dos Povos Indígenas do Estado de São Paulo (Capisp) vai levar a Brasília e sugeri que ele apresente isso ao Ministério Público (MP) de Brasília e ao Supremo Tribunal Federal (STF), para que se cumpra a Constituição. O Brasil todo é terra indígena, não tem por que dizer que a gente está fora das nossas terras.
Fiz isso também — usei a rede — para os testes rápidos [da COVID-19] dos/as indígenas aqui de Guarulhos, e quando o Instituto Butantan estava pensando em fazer um trabalho de testagem, ouviu os meus apelos e testou a população da aldeia toda. E, depois, tem uma outra aldeia, essa tem uma grande população indígena, eles [Butantan] foram lá e testaram.
Todas essas minhas intervenções são pautadas em tudo o que eu aprendi, acumulei, ao longo da vida, como técnica de enfermagem, como liderança, como uma pessoa que pensa no próximo, no social. Só que agora, com o curso de Serviço Social, eu peguei mais uma bagagem e estou fazendo as intervenções que visam buscar a garantia de direitos, direitos humanos, que é a base do nosso curso, e um direito fundamental, um direito tão importante que é a saúde.
CRESS-SP: Como você descreveria a vida das mulheres indígenas hoje no país?
Vanuza: Ser mulher não está fácil nem para a mulher indígena, nem para a não indígena. E no Brasil, ultimamente, não dá, porque o machismo se aflorou de uma forma assustadora com o momento político que vivemos, e aumentou. A violência contra a mulher aumentou e essa violência também já chegou à mulher indígena, tanto à da aldeia, como à no contexto urbano. Também, hoje em dia, há mulheres indígenas que casam com não indígenas e sofrem violência. A gente conversa para que não aceite, para que denuncie, para que não seja conivente. Tivemos pela primeira vez, em 2019, a Marcha das Mulheres em Brasília. Foi a primeira vez que organizamos, eu fiz parte da comissão de São Paulo. Os homens não foram contra, mas eu senti um pouco de machismo de algumas lideranças.
Eu nunca sofri nenhuma violência física, eu já sofri outros tipos de preconceito, de discriminação, a física não. Mas a psicológica também é tão forte como a física, e a gente vive combatendo. E a mulher indígena, hoje, também está empoderada. Não que a gente queira ser melhor que os homens quando se forma liderança. A gente respeita o homem indígena, quer ficar lado a lado, não quer nem estar à frente, nem atrás do homem, a gente só não quer nenhum tipo de violência, nenhum tipo de discriminação, quer ser ouvida. Na nossa aldeia, há várias etnias em que as lideranças são mulheres, são respeitadas, dividem as tarefas, as competências, não tem esse negócio de homem mandar mais do que a mulher, a gente não aceita isso. E, hoje, as mulheres indígenas, como as outras mulheres, são as que mais estão nos estudos, nas universidades, e têm dupla jornada… E eu digo que a gente tem que combater realmente o machismo dentro das nossas casas.
Mulher pode ser o que ela quiser ser, e a mulher indígena também. Se ela quiser estudar, estude. Se ela quiser ficar só cuidando da casa, sendo parteira, sendo rezadeira, a gente apoia. A gente só quer respeito da sociedade e dos nossos companheiros. E não é fácil ser mulher hoje, ser mulher indígena, ser mulher nordestina. Sofremos preconceito, discriminações, porque viemos de um país que foi invadido, que foi colonizado. Então o machismo, o patriarcado, está presente em toda a sociedade, e os/as indígenas também convivem com esse patriarcado, com esse machismo. Com nosso olhar feminino, com nosso olhar de mulher indígena, de mulher de resistência, vamos caminhando lado a lado com esses homens e dizendo: “Aqui não. Aqui, respeitem-nos, [respeitem] o que nós pensamos. Estamos do lado de vocês, nem à frente, nem atrás”.
CRESS-SP: Como mulher indígena, profissional de duas áreas, trabalhadora, você sente que há barreiras que vêm tanto das questões de gênero quanto do racismo?
Vanuza: O maior preconceito que eu sofri foi na CASAI-SP, quando eu atuava como técnica de enfermagem. Fui demitida porque disseram que eu não cumpria hierarquia, porque eu cobrava, e eu fazia um tratamento, um atendimento humanizado, eu pensava no bem-estar do paciente. Mas, claro, sem desrespeitar as ordens, sem desrespeitar a chefia. Recorri ao MP, fui recontratada, depois fui demitida de novo porque eu fiz uma série de apontamentos de violação de direitos, como falta de materiais para segurança dos/as profissionais e dos/as usuários/as, dos/as pacientes. Esses apontamentos foram todos sanados e eu fui demitida.
Eu era chamada a todo momento, pelo meu jeito de me expressar, pela minha escrita, até, uma vez, dizendo que eu não sabia escrever, que eu não tinha qualificação técnica… E eu fiz uma denúncia na Secretaria de Justiça, e lá a pessoa negou, disse que, nem por um momento, nunca cometeu isso.
Eu sofri, sim, preconceito, por ser indígena, por ser mulher, por ser nordestina e por ser uma pessoa que não concorda com a desumanidade, que não trabalha só pelo serviço, que trabalha por querer um mundo mais igualitário, mais justo, e eu sofri muito preconceito por isso. Agora, como a primeira indígena a ser vacinada [contra a COVID-19], eu fui chamada de hipócrita, de cínica, e de outras ofensas.
CRESS-SP: O que significou ter sido a primeira indígena brasileira vacinada contra a covid-19 no Brasil, no primeiro dia de vacinação no país?
Vanuza: Porque eu tenho uma credibilidade perante os meus parentes*, porque trabalhei na Casa de Apoio à Saúde Indígena, por onde passaram indígenas de todo o Brasil, eles/as me vendo ali, eu tomando uma vacina, eu me encorajando, eles/as iam tomar. Há uma preocupação entre os/as indígenas, eles/as não queriam tomar, porque para eles/as as vacinas vieram para matar — Por que primeiro os/as indígenas das aldeias?. Há uma vertente muito forte contra a ciência, a educação.
*todos/as os/as indígenas do mundo, especialmente os/as do Brasil; como os povos indígenas de todo o mundo se tratam, por se compreenderem como sendo os primeiros habitantes da Terra/terra.
Então, eu fui ali, uma mulher indígena, que acredita nas suas ervas medicinais, na sua crença, no poder de cura de um pajé, mas que não despreza a medicina ocidental, a ciência, que enaltece a ciência. Ali, eu estava levando a esperança e tendo a coragem de ser a primeira — que poderia ter alguma reação ou não —, com gratidão, esperança. E, com certeza, eu encorajei muitos/as indígenas e não indígenas, que me conhecem, a se vacinarem. Poder dizer isso para o Brasil e o mundo, a minha gratidão, a minha esperança, em viver, eu, que sobrevivi à COVID, que sei como é tão difícil o medo, como essa doença é assustadora. Foi uma gratidão e uma esperança, porque a ciência venceu a fake news, a ciência está vencendo o negacionismo.
CRESS-SP: Que mensagem você gostaria de deixar para todas as mulheres neste 8 de Março?
Vanuza: Eu deixo uma reflexão de que o mundo é feminino, a Terra/terra é a nossa mãe, a Terra/terra é feminina, a natureza é nossa irmã, a natureza é feminina. Todo ser humano vem da gente, é uma parte de nós. Que nós nos empoderemos disso e saibamos disso, e não aceitemos qualquer tipo de discriminação, de violência.
Quando dizemos não, é não, e não aceitamos relacionamentos abusivos, nem das instituições, nem dos nossos companheiros, nem dos nossos filhos. Vamos criar seres humanos — mulheres, homens — mais humanos, e vamos erradicar o machismo, o preconceito, dentro das nossas casas, começando por nós. Vamos dar liberdade para nossos/as filhos/as e nos libertar de qualquer tipo de preconceito, de violência. Nós não merecemos menos do que o nosso lugar de fato, nosso lugar no mundo, e o mundo é feminino, porque somos nós que damos a vida. Vamos tomar o nosso poder, de fato, no mundo.
CRESS-SP: E o que você gostaria de dizer aos/às assistentes sociais no mês em que se celebra o Dia Internacional da Mulher?
Vanuza: Vamos ter um olhar humano do território, aproximar-nos também das questões indígenas. O Serviço Social tem uma dívida com os/as indígenas, que são os povos originários. Depois de 521 anos, nós ainda somos discriminados/as, desrespeitados/as. O Serviço Social, os órgãos que regularizam a profissão, o curso, entenderem, aproximarem-se, porque nós só podemos defender o que nós conhecemos, e o Serviço Social, os/as assistentes sociais não conhecem o povo indígena, não conhecem a mulher indígena, não conhecem o movimento indígena. A gente não defende o desconhecido.
Então, para que a gente tenha um mundo mais humanitário, mais igualitário, assistentes sociais e órgãos que regularizam essa profissão, aproximem-se do movimento indígena, da mulher indígena, conheçam o seu território, passem a conhecer uma aldeia para que a gente faça justiça social, para que a gente venha a exercer a nossa profissão com liberdade, com segurança, e fazer o que nós temos que fazer, que é defender os direitos humanos e atender com o olhar humano que só nós, assistentes sociais, temos.
E neste momento difícil de retrocesso, de corte de verbas com as políticas sociais, com a assistência, que nós sejamos firmes e encontremos alternativa junto com o território e com os/as usuários/as, para que a gente venha realmente a fazer a diferença num momento tão crucial das nossas vidas e das vidas dos/as nossos/as usuários/as.
CRESS-SP: Quem são suas maiores referências femininas?
Vanuza: Uma mulher em quem eu me espelhei muito é Luiza Erundina, uma das mulheres que eu admiro demais. E outra é a Rosalina Santa Cruz, assistente social da PUC, uma mulher que foi torturada, que viveu a ditadura e que perdeu o irmão, e ela é uma pessoa doce, meiga.
A minha maior referência é a minha mãe (Dona Augusta), que faleceu no ano passado, com 81 anos. Uma mulher de um olhar diferenciado, humana, que tinha uma sede por justiça social… Eu lembro, quando houve a reforma trabalhista, que ia mexer com aposentadoria, que ela ficou brava, e reclamou, e meu filho disse: “Ô, vó, porque a senhora tá preocupada se a senhora já tá aposentada, no fim da vida, se a senhora tá aí, acamada, e fica se preocupando?”. Ela respondeu assim: “Meu filho, porque o mundo não gira em torno do meu umbigo. Eu tô preocupada com você, eu tô preocupada com os/as seus/suas filhos/as que vão vir, com as próximas gerações. Eu sei que eu vou passar, mas o mundo fica”.