Ana Cléia Machado Araújo em entrevista para a série “A diversidade e a força das mulheres do Serviço Social”

Fundadora do Cursinho Popular Ivone Lara, a assistente social fala da busca por mudanças, da importância da luta coletiva e da esperança na sua atuação profissional

 

Na rotina de trabalho da assistente social Ana Cléia Machado Araújo, atuante no CRAS (Centro de Referência de Assistência Social) Itaquera, na capital paulista, cada atendimento prestado percorreu uma via repleta de barreiras antes de se realizar. Os obstáculos são erguidos por processos conhecidos da grande maioria dos/as profissionais do Serviço Social no Brasil: o desfinanciamento, o sucateamento, o desmonte das políticas públicas. “É desafiador e, mais, é um aprendizado constante. É tentar fazer o máximo com o mínimo”, descreve Ana Cléia.

Ao longo da carreira, desde o início da sua formação profissional, ela entendeu que esse aprendizado é maior quando tira do isolamento, quando agrega outros olhares, traz e reconhece outros sujeitos. Para a assistente social, é a força coletiva que promove mudanças, e suas iniciativas caminham nessa busca, como acontece no Cursinho Popular Ivone Lara, do qual é uma das fundadoras.

“Quando fundamos, ele era meramente um grupo de estudo, e então foi ganhando uma outra proporção, por muita procura, e fomos aprendendo a existir como uma inciativa popular, como um coletivo. Para além do estudo, é ter um lugar para esses/as profissionais pensarem, enquanto servidores/as públicos/as, também como sujeitos de transformações”, reflete.

Na entrevista para a série “A diversidade e a força das mulheres do Serviço Social”, Ana Cléia fala mais sobre o cursinho fundado há cerca de quatro anos, preparando assistentes sociais, psicólogos/as e pedagogos/as para concursos públicos e promovendo formação continuada e a educação inclusiva. Ela avalia os desafios da sua atuação profissional e deixa uma mensagem de força e esperança para os trabalhadores e as trabalhadoras do Serviço Social. “Acredito na mudança, que ela tem que partir de cá, todos os dias, no nosso fazer profissional, no nosso cotidiano, na nossa rotina, com os/as nossos/as, com os/as usuários/as e munícipes das políticas públicas”, afirma.

Site CRESS-SP: De forma geral, como é atuar, hoje, no CRAS?

Ana Cléia Machado Araújo: É desafiador, não só na perspectiva da atuação profissional em si, mas não há como nos descolar da realidade e do que estamos vivenciando enquanto Brasil, num Governo que, cada vez mais, o corte de verbas para as políticas públicas tem aumentado, o sucateamento dos serviços públicos, o desmonte, praticamente.

Pensando amplamente — na questão do desemprego, da miserabilidade, agravados nesses dois anos de pandemia — e olhando para o meu território — em que nós, em Itaquera, referenciados a quase cinco bairros, temos uma profissional, uma assistente social que realiza o atendimento das famílias, onde vivenciamos a falta de RH (Recursos Humanos), em que há Centro de Referência com uma ou duas profissionais para dar conta de supervisão de serviço mais atendimento —, tem sido bem difícil.

               E temos um Governo que chama o/a servidor/a público/a de vagabundo/a, com cortes de milhões nos programas de transferência de renda, que não tem uma política de segurança alimentar, que implanta um Auxílio Brasil de R$ 400 — que muitas famílias dentro do perfil não estão recebendo —, e você depara todos os dias com a fome… É desafiador e, mais, é um aprendizado constante. É tentar fazer o máximo com o mínimo.

CRESS-SP: Especificamente na região onde desenvolve seu trabalho, como é essa perspectiva de atuação?

Ana Cléia: A perspectiva é de mudanças. Que tenhamos um RH mínimo, pelo menos para conseguirmos atender um pouco mais, com qualidade e possibilidades de um acompanhamento melhor. Porque, infelizmente, onde estou, só eu faço o atendimento. Então estamos em defasagem. O acúmulo de tarefas, de demandas, a falta de RH têm impactado muito, todos os dias. Estamos trabalhando na perspectiva de que é preciso haver mudanças — de gestão, na Secretaria, no Governo — para que consigamos minimamente fazer, pelo menos nos aproximar do que está na Política Pública.

Aqui no nosso território, uma das coisas construídas ao longo dos anos foi uma rede fortalecida, a Rede Intersetorial de Itaquera, que envolve várias políticas públicas, vários/as trabalhadores/as e usuários/as, em que discutimos as questões do território. Temos tido algumas ações para que esse/a trabalhador/a do território — isolado/a, sozinho/a, com diversas demandas, sobrecarregado/a — consiga partilhar algumas das ações, pensar saídas coletivas, enfrentamentos coletivos. Vamos tentando nos fortalecer e fazer o melhor para esse atendimento.

Acho importante fazer aqui um adendo referente à pandemia da COVID-19 e ao adoecimento dos/as trabalhadores/as devido à sobrecarga. Nós não paramos, considerados/as profissionais essenciais, e seguimos sem qualidade, trabalhando muitas vezes com falta de EPIs (Equipamentos de Proteção Individual)… E quando temos uma pessoa afastada, isso também sobrecarrega, fragiliza e não temos como colocar na conta do/a trabalhador/a. O momento tem sido muito difícil, muito desafiador.

E aí você me pergunta: “Por que continua?”. Porque eu acredito. Acredito que é com luta que conseguimos mudar. Acredito na mudança, que ela tem que partir de cá, todos os dias, no nosso fazer profissional, no nosso cotidiano, na nossa rotina, com os/as nossos/as, com os/as usuários/as e munícipes das políticas públicas.         

CRESS-SP: Que atividades principais integram sua rotina de trabalho?

Ana Cléia: Resumindo, minha rotina é de atendimento social, visitas domiciliares, relatórios para Vara da Infância, Conselhos Tutelares, acompanhamento PAIF (Serviço de Proteção e Atendimento Integral à Família) de alguns casos — porque não consigo de todos, mas tento fazer o máximo para acompanhar — e agora voltei a atender os Grupos, para que essas famílias não precisem ficar esperando tanto para serem atendidas. Atendo pessoas em situação de rua, faço parte da Comissão da Rede Intersetorial de Itaquera, em que fazemos articulações no território, discussões de casos com serviços das outras políticas públicas e da própria assistência. Ainda há as sessões públicas dos serviços que estão passando por audiência, mérito social… Então não há como não ter um trabalho em rede.

Eu olho para trás e digo: “Não sei como eu resisti a esses dois anos de pandemia, como ainda estou resistindo sozinha”. Mas acho que é porque eu acredito. Acredito que posso fazer a diferença, não só nesses atendimentos e acompanhamentos como também na formação com os/as estudantes, na troca com outros/as profissionais, na construção desses espaços coletivos. Por mais que às vezes eu não consiga dar aquela resposta ou fazer da forma como eu gostaria — até por uma questão de estrutura, e de tempo, e de demandas —, eu sempre olho e faço também a crítica cotidiana da minha atuação profissional para que ela não se perca, não se burocratize, para que eu não fique só nas queixas, mas que de fato eu consiga avançar um pouco mais. E aí, as/os colegas, as trocas, isso é muito, muito importante.

 

CRESS-SP: O que a motiva a fazer parte da iniciativa do Cursinho Popular Ivone Lara?

Ana Cléia: Eu posso resumir como esperança. O cursinho foi um sonho, desde que eu era estudante de Serviço Social. Eu sempre gostei de fazer grupo de estudo, porque para mim é sempre importante ter essa troca, e eu vi o quanto isso foi importante para o meu processo. Quando fundamos, ele era meramente um grupo de estudo, e então foi ganhando uma outra proporção, por muita procura, e fomos aprendendo a existir como uma inciativa popular, como um coletivo. Então é um respirar, acreditar que podemos fazer a diferença. É um sonho que está virando realidade. Um sonho que eu não sonhei sozinha, sonhamos juntos/as.

Para além do estudo, é ter um lugar para esses/as profissionais pensarem, enquanto servidores/as públicos/as, também como sujeitos de transformações. Não é só o estudo para concurso, também temos as formações. Cada professor/a voluntário/a, cada aluno/a me dá esperança de que estamos no caminho certo. Posso dizer que são esses espaços como o Cursinho Popular Ivone Lara, que virou um coletivo, que vai além da questão do grupo de estudo, a Rede Intersetorial de Itaquera, o NUCRESS (Núcleo Descentralizado do CRESS-SP) que me colocam com os pés no chão, mas que também me dão esperança para continuar.                

 

CRESS-SP: Que reflexão você faz sobre a iniciativa, do ponto de vista da articulação coletiva de trabalhadores/as para a formação de um cursinho popular?

Ana Cléia: Na verdade, ele inicia com uma demanda, inclusive uma demanda de mercado de trabalho, com muitos/as profissionais desempregados/as, muito sucateamento e aqueles/as empregados/as da rede terceirizada, e a necessidade de haver um espaço coletivo onde possam circular o conhecimento, o aprendizado, mas também o comprometimento com a luta.

Ao longo do tempo, com a questão da pandemia, que agravou a participação dos/as integrantes, em que não conseguíamos mais ter as aulas presenciais, ter esse toque, esse contato, afeto, essas trocas, as pessoas já estavam cansadas do on-line, passamos a ver esse espaço como também um espaço político, de luta. Tivemos que pensar ações para atender as necessidades dos/as alunos/as e de algumas comunidades, nos juntamos com outros coletivos para pensarmos em ações de enfrentamento, e estamos ainda em construção.

Hoje, a organização do cursinho não é mais centralizada numa comissão, cada aluno/a faz parte e compõe para a execução do próprio cursinho, e nos dividimos em Grupos de Trabalho (GTs). Então ainda não está dado, é um processo em construção em que os/as trabalhadores/as se reconhecem como responsáveis e vão dando a cara — inclusive a escolha do nome —, vão, de fato, fazendo existir.

São esses espaços como o Cursinho Popular Ivone Lara, (…) a Rede Intersetorial de Itaquera, o NUCRESS que me colocam com os pés no chão, mas que também me dão esperança para continuar

 

Tem sido um espaço potente de muitas discussões para além da formação, da capacitação, mas para discussões bem importantes. E nestes encontros — os Ciclos Formativos, em que convidamos um/a profissional para falar sobre temas que circulam entre todos/as, abertos para outras pessoas que não são participantes do cursinho —, a gente vem potencializando esse espaço. É uma construção coletiva, como também a Rede e o NUCRESS são espaços de potência e que fortalecem a luta.

 

CRESS-SP: Você identifica a consolidação do NUCRESS Leste como um espaço de articulação política de assistentes sociais da Zona Leste de São Paulo, composto majoritariamente por mulheres?

Ana Cléia: De fato, identificamos, nessa consolidação do NUCRESS Leste, a especificidade de ser construído por maioria de mulheres pretas. Na sua formação, quando cheguei para compor, sua maioria era de mulheres, e pretas. Isso me chamou atenção. É um núcleo que, historicamente, sempre debateu a questão do racismo. Desde a sua fundação, sempre traz esse questionamento de pautar o CRESS sobre o tema, tanto que encabeçou a campanha [“Assistentes Sociais no Combate ao Racismo”]. Foi o primeiro núcleo, antes dela, a fazer um seminário sobre o racismo. Estamos sempre trazendo essa discussão, porque também é uma demanda da base.

Temos visto nesta pandemia, com os encontros on-line, participações de diversas regiões, e temos observado uma participação, agora mais significativa, dos homens, não tanto quanto das mulheres, acho que até por conta da nossa profissão. O NUCRESS Leste, como acredito que os outros NUCRESS, é um espaço de articulação política, de posicionamento, de luta. São espaços em que conseguimos trazer pessoas de diversos locais e regiões, e que vêm contribuindo com a formação política desses/as profissionais e estudantes que compõem [o NUCRESS Leste]. Temos aqui este diferencial dos/as estudantes também, que vêm compor conosco, conhecer, se aproximar do CRESS-SP. O NUCRESS acaba sendo esse espaço de aproximação.

Na Zona Leste, observamos, além de mulheres, mulheres pretas, da luta, que compõem outros espaços, que estão em busca de formações, trocas, fortalecimento. Observo um salto tanto político quanto de articulação, conhecimento, aprendizado. Então é um espaço que defendemos muito, e convidamos, não só as mulheres, como também os homens, os trabalhadores, lgbtqia+, que fazem parte desse quadro de profissionais do Serviço Social, a comporem conosco. É um espaço em que, de fato, temos visto muitos resultados.

 

Faço também a crítica cotidiana da minha atuação profissional para que ela não se perca, não se burocratize, para que eu não fique só nas queixas, mas que de fato eu consiga avançar um pouco mais. E aí, as/os colegas, as trocas, isso é muito, muito importante

 

CRESS-SP: Para você, como ser mulher atravessa a sua atuação profissional e a profissão de assistente social como um todo?

Ana Cléia: Ser mulher atravessa muitas coisas, porque antes de ser profissional, eu sou mulher. O que é ser mulher numa sociedade machista, ser mulher e negra numa sociedade racista, que, infelizmente, coloca a mulher como inferior? O fato de eu ser uma profissional não quer dizer que estou isenta de passar por diversas situações. Inclusive, a maioria dos atendimentos é de mulheres. E ser mulher preta, periférica é um enfrentamento cotidiano de várias questões.

É muito difícil falar da profissão no sentido de que hoje ela é majoritariamente feminina, mas gostaríamos que, de fato, houvesse mais homens atuando como profissionais de Serviço Social. Porém, isso não descarta a importância da discussão de gênero dentro da profissão e inclusive com o recorte de raça. Porque enfrentamos diversas questões no cotidiano, na vida profissional, na vida pessoal. Falar de gênero feminino nesta sociedade, com tudo o que temos enfrentado, é desafiador, e, dependendo do espaço em que você atua, é mais desafiador ainda.

Quando você é mulher e atende uma outra mulher, dependendo da situação, principalmente quando é violência de gênero, percebemos o quanto, para essa munícipe, ser atendida por uma mulher é um diferencial. Mas, por vezes, quando fazemos o atendimento para o homem, o quanto observamos, dependendo do que ele vai trazer, a dificuldade! Mas isso é dado pela própria sociedade, não é uma questão só da nossa profissão. Então é pensar, para além da profissão, o que é ser mulher nessa sociedade.    

(((fecha texto)))

 

(((foto))) ana cléia

(((legenda))) Ana Cléia Machado Araújo, assistente social no CRAS, base e membro da Comissão Organizadora do NUCRESS Leste e da Rede Intersetorial de Itaquera.

 

(((olho 1))) “São esses espaços como o Cursinho Popular Ivone Lara, (…) a Rede Intersetorial de Itaquera, o NUCRESS que me colocam com os pés no chão, mas que também me dão esperança para continuar”

 

(((olho 2))) “Faço também a crítica cotidiana da minha atuação profissional para que ela não se perca, não se burocratize, para que eu não fique só nas queixas, mas que de fato eu consiga avançar um pouco mais. E aí, as/os colegas, as trocas, isso é muito, muito importante”

 

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